Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

Qual a diferença entre o Brasil e a Grécia? Lá na Grécia eles enfrentam a impiedosa imposição de políticas de ajuste estrutural da “Tróika”, coisa que lembra os ajustes e acordos com o FMI do Brasil, no final dos 80 e 90 do século passado. Aqui e agora, no Brasil, voltamos a viver o drama do ajuste, mas por decisão do nosso governo, manietado por grandes interesses bancários internos e das tais “mil famílias” detentoras de direitos sobre a dívida pública. Lá e aqui, nos dizem que devemos ser fiscalmente responsáveis. Responsáveis por quem e por que dívida? Se for para ser responsáveis por nosso povo, lá e aqui estamos diante do mesmo imperativo ético: respeitar, antes de mais nada, os direitos fundamentais da cidadania. Depois, veremos o que sobra para satisfazer interesses “abutres”, como bem definiriam os patrícios argentinos. Isto mesmo, “abutres”, de rapinagem, de ganhos sobre o trabalho de outros; acima de tudo, acima de direitos de cidadania e até de vida de todo mundo.

Que drama! Não imaginava que voltaríamos a isto, que conquistaríamos soberania e autoestima com a redemocratização para, no final de um ciclo de 30 anos, nos subjugar de forma subserviente aos interesses do capital. Depois de sentirmos força instituinte e constituinte como cidadania – com grandes percalços, sem dúvida -, definindo uma Constituição Cidadã e avançando, apesar de tudo, com governos de medíocres a razoáveis – Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma -, chegamos ao impasse atual. Estamos com um governo Dilma manietado, sem capacidade de tomar iniciativa, dependente de “medidas de ajuste” de alguém vindo do sistema financeiro e de escaramuças de cangaceiros travestidos de salvadores da pátria como Cunha e Renan. Eu poderia morrer sem passar por esta! Mas, apesar de tudo, devo confessar, ainda é melhor viver e enfrentar mais este desafio, coisa que minha geração aprendeu a fazer muito bem.

Até aqui, vivi para conquistar e ampliar direitos de cidadania. Sou nascido no fim da II Guerra Mundial e no dia que inaugurou a era nuclear. Minha geração experimentou a emoção da declaração universal dos direitos humanos, que começa afirmando que todos os seres humanos, sem distinção, nascem iguais em direitos. E tivemos nosso 1968 – inteiramente nosso, por sinal – de radical manifesto emancipatório, talvez mais importante que a fracassada experiência socialista, tão bem retratada pelo cubano Padura.

Temos nosso Brasil para cuidar, après tout. É desanimador o desmanche, a desconstrução que está em curso. Lutamos muito para conquistar direitos, estamos sem forças para impedir sua desconstrução. Onde vamos parar? Será que um grande experimento mestiço, como o nosso, não tem chances de dar certo? A única saída é aceitar a regras dominantes no mundo globalizado? Não dá para aceitar isto! Afinal, somos nós, os 80% da humanidade ou, até, 99% contra 1%, considerando os que podem se juntar a nós do mundo desenvolvido, que desejam outra coisa. Será que não temos capacidade de mudar?

Em todo caso, nós temos o nosso Brasil. Precisamos sair da tontice que nos paralisa no momento. Diferenças entre nós são muitas, mas isto acaba sendo uma possibilidade e não um problema. Afinal, transformar nossas diferenças em virtude democrática para buscar a melhor solução é uma fortaleza, uma potencialidade. Precisamos enfrentar tal desafio com generosidade e ousadia, radicalizando a democracia. Na conjuntura quadrada e indigesta em que estamos parecem faltar forças, mas impossível não é.

A solução do impasse atual está no interior das contradições que vivemos como cidadania. O risco é aparecerem “salvadores da pátria”, com suas propostas populistas que mais estragos fazem do que abrem caminhos. Cabe a nós nos engajar e agir. Mas, reconheço, nos faltam imaginários mobilizadores. Perdemos utopias, deixamos de acreditar que o impossível pode se tornar possível um dia. Comecemos sonhando. Ousemos!

Sem dúvida, a desconstrução que está na agenda política do país é monumental. Basta lembrar as medidas de ajuste, todas visando direitos conquistados. Os direitos até podem ter sido mal implementados por políticas públicas, com recursos sempre escassos quando se trata de direitos e de cidadania, mal protegidos e garantidos por um sistema jurídico e policial feito para poderosos e não para todos. Mas o que não poderíamos ter aceito, de jeito nenhum, é a sua pura desconstrução. Afinal, muita gente lutou por eles. Agora, simples medidas negociadas e votadas com um Congresso, comprometido em salvar a própria pele dos congressistas, acabam sendo um atentado à própria democracia.

Parece pouco, mas não é. As mudanças propostas para a questão de terras indígenas – uma dívida de nascimento do Brasil com povos originários – podem reafirmar o princípio da execrada colonização, desta vez internalizada e exercida em nome do interesse nacional, para explorar minérios em suas terras ou alagá-las com grandes barragens hidrelétricas. A pretendida mudança do código de mineração é um complemento central nesta empreitada colonizatória e de entrega do território aos interesses predatórios do capital em busca de recursos naturais para sua própria valorização.

Já se fizeram mudanças no direito ao seguro de desemprego, não para aperfeiçoá-lo, mas para limitá-lo. E o desemprego, por conta das políticas recessivas de aumento de juros e contenção de investimentos e dispêndios públicos, está se expandindo a uma velocidade grega e espanhola. Mais ainda, o contingenciamento do orçamento afeta em especial as políticas sociais de saúde, educação e segurança, além de reduzir drasticamente investimentos em mobilidade, habitação e saneamento. Enfim, o ajuste é desconstrução de direitos, é contra a cidadania. Até onde? Até quando?

A nossa redemocratização, iniciada 30 anos atrás, foi instituinte e constituinte de direitos. Estamos agora desconstruindo. O quadro é preocupante na medida em que o ideário mobilizador de 30 anos atrás perdeu força e os principais movimentos aí surgidos estão, eles mesmos, em crise. Os mais evidentes são o movimento sindical, os movimentos sociais, os partidos de esquerda. Resistências e insurgências existem, mas fora de partidos e das representações, fora dos quadros instituídos de organizações e movimentos socioculturais e políticos. O dramático é que, apesar das grandes mudanças nas tecnologias de informação e comunicação, estamos ainda submetidos a uma mídia monopolística que faz a cabeça da maioria.

A hora é de voltar a construir nossas trincheiras. Chega de desconstrução de direitos! Basta de mercados e ajustes segundo interesses de grandes grupos econômico-financeiros! A nossa vida coletiva depende de nossa decisão coletiva soberana. A hora é de agir, mesmo diante de adversidades. Nada como um dia após o outro, pois nada é eterno, tudo pode mudar. Mas, urgentemente, precisamos imaginar e nos por em ação para que mudanças aconteçam.

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