Por Cândido Grzybowski
sociólogo, diretor do Ibase

Haitianos em busca de visto de permanência do Brasil.
Crédito: Agência de Notícias do Acre/Flickr.

Com a chegada de levas de haitianos nas cidades da fronteira amazônica e a repentina repercussão do caso na grande imprensa, as elites encasteladas em Brasília e o próprio Brasil parecem despertar ao desafio de terem que pensar a imigração e seu impacto local. A questão não é nova e nem os haitianos são em número acima de outros que buscam melhor sorte no Brasil. Basta lembrar os milhares de bolivianos em São Paulo, um enorme contingente de trabalhadores e trabalhadoras social e politicamente invisíveis, submetido a degradantes condições de trabalho. Provavelmente – não disponho dos dados – só o Rio recebeu nos últimos anos mais estrangeiros para trabalhar do que o contingente de imigrantes haitianos na Amazônia brasileira. Mas aí a questão é outra, trata-se de “gente do bem”, trazida pelas grandes empresas, que disputam palmo a palmo espaço para seus negócios numa cidade em processo de selvagem transformação para se tornar referência global de desenfreada acumulação de capitais.
Este é o pano de fundo imediato da discussão sobre imigração. Mas política de imigração de uma perspectiva de cidadania planetária e sustentabilidade da vida não é algo seletivo e excludente, é antes uma política de construção da convivência e do compartilhamento do Planeta que temos entre todos os povos, com definição de direitos e responsabilidades entre todos. No caso do haitianos e o Brasil, pelas reações racistas e chauvinistas em torno ao tema, não estamos diante da possibilidade de definir uma política mais clara e democrática de imigração. Toma conta do debate o tal “interesse nacional” (ideologia difusa e confusa sempre a serviço dos interesses mais conservadores e retrógrados socialmente) e nossa integridade (ela mesma usurpada de outros que aqui viveram antes de nós) do que ver como nos abrimos ao mundo e compreendermos os enormes desafios que temos pela frente, como potência emergente, para construí-lo de forma a dar lugar a todos os seres humanos, com pleno gozo de todos os direitos, em particular o direito de compartir o Planeta e nele viver. Talvez seja até pior, pois na prática deixamos que as grandes corporações e o agronegócio definam o tipo de imigrante “útil” ao Brasil, uma política aos moldes da acumulação.
Sou bisneto de imigrantes poloneses, chegados no Brasil em 1890. Não os conheci, mas tive o privilégio de conviver com o avô Jan Grzybowski, nascido em 1880 no Leste da Polônia, terra de nobres latifundistas e entreguistas que, para manter seu privilégios sobre a terra, superexplorar os camponeses e manter o domínio político, aceitaram a longa ocupação russa. A extrema pobreza arrancou meu avô e sua família da Polônia que ele tanto amava. E foi a extrema pobreza que os trouxe ao Brasil, cuja política de imigração não passava de arregimentar gente na periferia da Europa industrial (Inglaterra e França), para substituir escravos e virarem colonos nas plantações de café ou colonos produtores de alimentos para a grande maioria que acabava no complexo agroexportador do café. Neste quadro, meu avô acabou desbravando terras em Erechim, no Norte do Rio Grande do Sul, comendo o pão que o diabo amassou, para produzir milho e engordar porco, exportando banha para os colonos do café, em São Paulo. Nasci na comunidade polonesa que aí se formou com descendentes dos pioneiros. Trago do berço a dor e o medo da migração, levado para mundos e cultura desconhecidas. Trago, também, o generoso sentimento da acolhida, aprendendo com coleguinhas do primeiro ano da escola primária a beleza da língua portuguesa.
Os haitianos de hoje, como os bolivianos e muitos outros na nossa volta, são os pobres e excluídos errantes que a globalização capitalista só faz aumentar. Fazem parte dos milhões de refugiados econômicos, que penam para serem aceitos em qualquer lugar do mundo. Só que esquecemos que a história da humanidade é uma história de migrações, violentas e conquistadoras umas, clandestinas e sorrateiras outras. Migrantes internos e externos. Só a China hoje deve ter de 200 a 300 milhões destes migrantes internos sem eira nem beira. Na Europa são milhões de africanos que tentam chegar e milhões que são mandados de volta, mas que retornam e retornam. Os diques de contenção no Norte da África, financiados por países europeus, são verdadeiros campos de concentração. Falamos muitos dos muros que nos separam, mas esquecemos do vergonhoso muro na fronteira entre EUA e o México, só para conter imigrantes latinos pobres. A imigração neste mundo em que livres são os capitais, as grandes empresas e as mercadorias, é o aspecto mais revelador da liberdade limitada, controlada e excludente, em que assenta a civilização capitalista industrial em sua fase neoliberal.  Civilização contra gente, em última análise. Gente só conta se pode ser dominada, explorada, tendo seus direitos negados. Imigrante povão só clandestino num mundo em que a humanidade toma consciência, pela primeira vez, de sua condição de cidadã em termos planetários.
Temos uma grande desafio para a democracia e o modo como vamos exercer nosso emergente poder no plano mundial. Claro que existem questões de diversidade cultural e, sobretudo, do reconhecimento da diversidade, de ver nos outros de algum modo espelhada a nossa própria condição humana. Quem são os outros e quem somos nós? Seria bom que refletíssemos sobre o drama de muitos e muitas de nós que tiveram que enfrentar a situação de ser parte dos outros em terras estrangeiras. Estou me referindo a questões humanitárias, mas também de projeto de sociedade que democraticamente buscamos construir. Fechar-se à imigração definitivamente não é uma política para o Brasil que o mundo precisa. O mundo é interdependente e é nele que precisamos exercer responsável e construtivamente a influência crescente do Brasil, para que novas relações e nova arquitetura de poder se estabeleçam visando a sustentabilidade da vida humana e uma condição digna de cidadania planetária para todos os seres humanos.

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