Cândido Grzybowski
Sociólogo, Ibase
O golpe institucional do impeachment, além de destituir um governo legitimamente eleito, está nos levando aos limites que diferenciam muito tenuamente uma democracia institucional de baixíssima intensidade e o fascismo enquanto tal. Podemos discutir in eternum se o processo foi legal ou não, mas esta não é a questão política mais relevante. Importa ver o que daí decorre. Uma agressão igual aos direitos de cidadania duramente conquistados mesmo se ainda limitados, valendo-se de artifícios legais, dada a total subserviência de um Congresso “federação de interesses privados”, só aconteceu até aqui com ditaduras assumidas. Tenho refletido sobre isto tomando casos da história do século passado. Afinal, Hitler e Mussolini chegaram ao poder, como primeiros ministros, por vias legais e parlamentares, apesar de serem também figuras de pouca expressão até então. Mas o desastre que praticaram não se limitou a seus países, foi uma barbárie de dimensões planetárias.
O esgarçamento que vivemos tem origem, sem dúvida, no encurralamento democrático em que estamos metidos. Não vou entrar na armação do golpe do impeachment, pela mídia e Judiciário, com a conivência política de bancadas financiadas por empresas privadas. Vivemos um duro ajuste econômico para satisfazer o verdadeiro “pedágio” financeiro que bancos e especuladores, daqui e de fora, exigem e o Governo Temer, com o seu gerentão Meireles, nos impõem. A verdadeira e única prioridade do governo é pagar juros para deixar a banca e a bolsa felizes. Isto consome quase 50% do orçamento federal! E depois se faz publicidade via televisão e rádio para dizer que o problema orçamentário tem origem nos sofríveis gastos sociais e na previdência social. As PECs, aprovadas e as em votação, e uma penca de Medidas Provisórias tem como objetivo único a submissão de tudo aos interesses de negócios privados. Tanto em seu conteúdo, como no atropelo institucional e jurídico por elas praticado, são atos radicalmente antidemocráticos. Afinal, o sentido da democracia é equalizar pela política o que está desigual na economia e na sociedade. Hoje, no Brasil, se usa a institucionalidade democrática para fazer o contrário, matando devagarinho a própria democracia. O pior é que o fascismo das propostas pode matar gente, e de fato está matando, mas isto não é visto como problema pelo governo golpista instalado em Brasília.
Temos um verdadeiro esgarçamento político e institucional no centro de nossa ameaça de fascismo. Mas ele não se limita a isto, pois invade imaginários e encurrala a própria proposta de democracia como modo de viver e de construir uma sociedade de direitos iguais, de justiça social e de sustentabilidade. Estamos diante de uma ruptura de “contratos sociais”, tanto constitucionais e legais, como os que constituem o caldo político e cultural em que a convivência social democrática, de respeito mútuo como detentores dos mesmos direitos, se torna possível. A diferença deixou de ser aceitável entre nós, assim como o enfrentamento da gigantesca desigualdade. Aliás, ser contra os direitos iguais e pregar o mais puro autoritarismo deixou de ficar escondido em armários, como mostra a ovação recebida por Bolsonaro na Hebraica, no Rio de Janeiro. Pior, a violência e o assassinato encontram respaldo aberto em muitos meios. Execuções sumárias praticadas por policiais contra jovens negros e pobres em favelas, com balas atiradas para matar, atingindo quem estiver no rumo delas até em escolas, mas consideradas “perdidas”, são saudadas como atos de patriotismo, como se viu a semana que passou. Violência contra indígenas, quilombolas e posseiros, homossexuais, mulheres passam a ser vistas como normais e até legítimas.
Os princípios éticos e os valores que fundam as democracias estão esgarçados. Há uma onda no mundo inteiro que aponta a barbárie como cenário possível. Hoje, ser intolerante, machista, racista, xenófobo e, até, fascista é como surfar na onda dominante. Defender direitos e igualdade é merecer desprezo, é estar por fora. Como foi possível chegarmos a isto? Devo reconhecer, como ativista e analista, que não cabiam em minha avaliação dos processos recentes vividos no Brasil e no mundo que os ódios sociais e o nível de autoritarismo antidemocráticos tivessem raízes tão profundas e extensas no seio das sociedades civis. Tenho que me render à realidade e admitir que a barbárie já a vivemos, deixou de ser somente algo possível no amanhã. Sempre podemos resistir, mas já foi longe demais. Ensaios de guerra mundial já estão aí, como o que se passa no Oriente Médio. Mas a guerra larval está instalada em nossas cidades e nos territórios rurais, sem ter sido declarada. Afinal, já se praticam mortes violentas no Brasil que montam a cifras iguais a verdadeiras guerras abertas.
Além dos ataques no campo da ética e dos valores, que corroem a segurança pública e a vida coletiva, convivemos com o esgarçamento nas condições de vida. Nos meus mais de 30 anos de caminhada matinal no Parque do Flamengo, nunca vi tanta gente não tendo outro lugar para viver, dormir e comer, além daquilo que um parque tem sobrando, o espaço livre e bem comum. No caso a que me refiro aqui, também espaço que serve de refúgio para desabrigados em situação extrema. Imagino o que se passa em outros lugares públicos da cidade! O certo é que parques e praças acolhem indiscriminadamente a todas e todos, mas não são organizados como abrigos e sim lugares de lazer, para se curtir a vida. O Parque do Flamengo, estando mais perto do Centro, entre a Zona Norte e a Zona Sul, é um dos espaços comuns mais democráticos e belos de nossa cidade. De modo espetacular, com seu charme que combina um tropicalismo, lindamente organizado, formando desenhos com a exuberância de árvores e palmeiras dos trópicos do mundo inteiro (próprio de Burle Marx), com praia e vista tanto do Pão de Açúcar como do Corcovado, acolhe verdadeiras multidões, especialmente nos fins de semana. Agora o Parque do Flamengo virou também endereço residencial para muita gente condenada à miséria. Em qualquer refúgio do parque, minimamente protegido de chuvas e ventos, encontram-se pessoas tentando sobreviver, com bens que vão pouco além de um papelão ou velho colchão, de um plástico ou esfarrapada colcha para se cobrir e aquecer à noite e de alguma sacola para guardar sei lá o que. Dá revolta sentir que a gente tem pouco ou nada a fazer diante de tamanha miséria.
Enfim, o esgarçamento de origem institucional parece um câncer, que está nos matando. Cura tem, mas não é certo que chegue a tempo. Como em qualquer situação em que descobrimos o temido câncer, prioridade número um é acreditar que podemos enfrentá-lo e até extirpá-lo. Segundo, reconhecer que uns e umas precisamos de outros e outras, devemos estar juntos e compartir, tanto dores como, sobretudo, esperanças. Terceiro, agir com determinação, mesmo sabendo que, talvez, não cheguemos lá para curtir o amanhã democrático, mas ao menos nossos filhos e netos, todas e todos que conosco compartilham os dias de hoje e os que virão podem ter dias melhores. Outro dia pode raiar mais depressa do que a gente imagina. Resistir e pensar em outro amanhã é uma condição para continuar sendo cidadania ativa, que acredita no poder transformador da democracia, criador de justiça e de sustentabilidade socioambiental. Trata-se, na verdade, de um refazer coletivo do tecido social, político e cultural esgarçado e, neste processo, transformar democraticamente o poder e a economia. Obra para a cidadania ativa desde aqui e agora.
 
Rio de Janeiro, 09/04/17

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