Cândido Grzybowski

Sociólogo, do Ibase

Qual a diferença entre a tal base do governo Temer no Congresso e o Centrão do tempo da Constituinte? Como estou revisitando o tema do processo constituinte de 1987/88 para pensar um enfoque a dar a um possível evento de celebração dos 30 anos da Constituição de 88, que no Ibase achamos oportuno viabilizar, me deparei com aquela enorme coalizão do Centrão. Os tempos, a conjuntura, os personagens são outros. Mas aquela aliança de forças de centro e conservadoras na retranca do processo de redemocratização e a atual base do governo Temer são um mesmo tipo de “saco de batatas” – estou utilizando intencionalmente uma expressão de Karl Marx – no sentido de que estão juntas, mas elas não tem unidade e identidade política, nem tem projeto. Tem maioria parlamentar, mas não hegemonia, e votam o que o oportunista chefe de bando manda. É curioso que, na época, o oportunista foi o Sarney, também um vice que acabou assumindo a presidência, como o Temer hoje. Só que os golpes dentro da legalidade – mas ilegítimos, tanto aquele como este – foram muito diferentes.

No entanto, de algum modo, ocorreram mudanças nos últimos 30 anos e muita coisa parece pétrea. Não dá para afirmar que somos a mesma sociedade sendo quase o dobro em população e mais urbana. Nem temos a mesma economia, apesar de sermos mais dependentes do extrativismo em grande escala (minérios, petróleo, soja e boi). Temos uma cidadania nova e eleitoralmente inclusiva, mas ainda não podemos exercer plenamente o direito instituinte e constituinte que nos cabe. O poder estatal não é mais uma ditadura, mas está longe de ser uma democracia, seja nos Parlamentos, espécie de federações de interesses privados, seja no Executivo loteado entre fiéis asseclas, seja no Judiciário, dos privilégios e prerrogativas vitalícias, acima até dos direitos. Temos as redes digitais e experimentamos a total liberdade de comunicação – até aqui muito anárquica – mas nossas cabeças sofrem constantemente a ameaça de “colonização” pela grande mídia privada e monopolista, que não admite a controvérsia. A verdade é que temos uma estrutura social que continua racista e machista, profundamente desigual. A síndrome da “Casa Grande e Senzala” está no nosso DNA social. Os latifundiários viraram agronegócio mas concentram ainda mais terras, continuam a empreitada da colonização, com conquista de terras protegidas, assassinatos de quem a eles se opõem e desmatamento sem limites, hoje medido em milhares de km quadrados de destruição anual. Enfim, avançamos na consciência e na vontade de ter direitos de cidadania, mas enfrentamos enormes barreiras, do cotidiano de “viração” à repressão de manifestações e até de balas perdidas cumprindo sua função assassina.

Creio que uma grande maioria da cidadania desta nossa amada terra, apesar de tudo, acompanhou de alguma forma o modo como a política está encurralada no nosso meio pelos golpistas. Gostemos ou não, tudo se faz numa aparência democrática para manter tudo como está. Até quando Temer vai continuar? Até o “Centrão” do Temer não implodir. Mas se Temer for defenestrado – uma possibilidade real – o que mudará realmente? Temos um sistema legal e institucional em que a permanência tem ascendência sobre a mudança. Tudo é feito para garantir continuidades sem rupturas, mesmo mudando personagens. Sistema onde falcatruas são mais toleráveis e processáveis judicialmente do que qualquer sinal ou indício de possível mudança.

Analiticamente, parece difícil sairmos da atual encrenca, com Temer ou sem ele. Mas o pessimismo da racionalidade não deve subjugar o otimismo da vontade, como nos ensinou Gramsci. Devemos apostar no que nossa cidadania sonha e deseja, uma sociedade democrática, justa, vibrante, boa para todo mundo, dançante de alegria como é próprio de nossa cultura comum. A possibilidade não é uma espécie de inevitável histórico para ninguém. Ela surge no devir, ela se faz na história, numa contraditória relação de forças, de ideias e, sobretudo, de vontades determinadas a ir até o fim. Assim, penso que a bandeira emergente de “diretas já” é mais sonho e desejo do que algo racionalmente viável. Porém, tem o poder de agregar vontades, é um imaginário mobilizador. Precisamos torná-lo irresistível, para que vire realidade impositiva. Para virar uma possibilidade efetiva depende de nós mesmos abraçarmos tal bandeira, antes de mais nada. Mas, depende igualmente de erros e desencontros de quem combatemos, o tal “Centrão” no Congresso – já tensionado pela corrupção, investigações, fragilidades e mentiras do próprio Temer, sinais de olhares diferentes daquela unanimidade burra da grande mídia, etc. –, do tal “humor” do mercado (a classe dos capitalistas, os tais 1% de privilegiados) e de circunstâncias, internas e externas, que ninguém controla. Enfim, precisamos ser ousados, estar preparados e determinados para o que der e vier.

Voltando ao título e ao começo desta crônica, estou pensando com meus botões o que muda e o que permanece com uma bandeira de “diretas já”. Sem dúvida, no imediato pensamos em eleições diretas e não na eleição indireta de um presidente na possível destituição de Temer. Mas podem ser diretas para tudo, para zerar e buscar legitimidade de tudo, especialmente em termos de Presidência e Congresso Nacional. Mas, não podemos esquecer disto, diretas abrem porteiras políticas que nos podem levar a uma nova Constituinte logo aí. Enfim, tudo é possível, tanto a vitória a mais impactante, como uma vitória limitada ou, ainda, uma derrota honrosa neste caso. Qualquer alternativa depende muito, muitíssimo, de nós mesmos, de nossa vontade.

Finalizo, lembrando mais uma vez o que cantávamos nas “Diretas Já” dos anos 80: “…quem sabe faz a hora, não espera acontecer…”.

Rio de Janeiro, 10/06/17

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