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A falta que fazem imaginários mobilizadores

Rio de Janeiro, 13 de outubro de 2014
A falta que fazem imaginários mobilizadores
Por Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Ibase

A conjuntura eleitoral que vivemos parece um ambiente enfumaçado, onde a visão fica prejudicada. As reais correntes de opinião, formadas por visões de futuro, análises do presente e de projetos, carregadas de valores e paixões, condensadas em partidos, estão embaralhadas. A diversidade brasileira e sua complexa estrutura de classes e frações de classes sociais está longe de se refletir de algum modo nos partidos existentes. Dos mais de 30 partidos registrados, que apresentaram candidatos no primeiro turno, a maioria são legendas sem identidade política real, pequenas confederações de interesses individuais ou, no máximo, corporativas, nunca direcionadas a uma causa pública sobre rumos a dar ao país. O resultado em termos de Congresso Nacional está aí: um saco de batatas, com pouca organicidade. Vai ser difícil compor maioria em torno a projetos, independentemente de quem seja vencedor no segundo turno presidencial. A tal coalizão para a governabilidade só com grandes “favores” e concessões, exatamente como se constituem bandos para assaltar ou dominar algum território.
Não dá para continuar assim. É certo que democracia é um “pacto de incertezas” e nisto está a sua capacidade de renovação. Mas é certo também que a incerteza só pode brotar das demandas mais profundas da cidadania. Reafirmo aqui o que sempre digo: só a cidadania é instituinte e constituinte. Cabe à cidadania mudar isto. Até que sinais neste sentido surgiram do turbilhão de manifestações que junho de 2013. Mas a explosão de cidadania de então não gerou um novo imaginário mobilizador como 30 anos atrás foi o “Diretas Já”, que levou à derrocada da ditadura militar. Estamos vivendo uma conjuntura eleitoral como se o Brasil não tivesse sido sacudido com as surpreendentes manifestações do ano passado.
No final, em termos da eleição presidencial, as eleições revelaram a polarização entre os candidatos do PT e do PSDB. Marina do PSB – seu partido de aluguel, diga-se de passagem – até tentou ser a expressão da difusa demanda cidadã por mudanças. Mas a sua inconsistência programática e, a bem da verdade, o seu velho oportunismo político e eleitoral não condizem com uma real corrente de opinião como defini acima. Venceram os dois partidos com visões e propostas mais elaboradas, além de estarem estruturados para disputar hegemonia na sociedade. Só que os dois falam, tanto na campanha do primeiro turno e como agora no segundo, mais de passado do que de futuro. Os candidatos põem em debate seus feitos quando governo – e, claro, justificativas para as corrupções respectivas – e não como pensam enfrentar os novos desafios, como se não estivéssemos diante de um novo país, com a maior geração jovem de sua história e com aproximadamente metade de seu eleitorado não tendo sido participante da reconstrução democrática. Em todo caso, menos mal que seja assim, mas que é insuficiente isto é.
O problema maior é o que elegemos para o Congresso Nacional. Muitos campeões de voto são réus respondendo a processos. Podem ser impedidos de tomar posse, se o nosso lento Judiciário decidir em tempo. Mas politicamente o que chama a atenção é tais candidatos terem número expressivo de eleitores. Candidatos com posições ideológicas e valores que defendem, mesmo que não de nosso agrado, como no Rio o Jair Bolsonaro e Jean Willys, são bons para a democracia. Mas os que tem problemas na Justiça deveriam ser barrados, de acordo com o que propõe a lei “Ficha Limpa”. Porém, o que mais me surpreende é a cidadania votar em gente com “ficha suja”. Por quê? Será que ainda está em vigor e setores da cidadania se orientam pelo ditado “rouba mas faz”?
Um grande problema para a democracia é o crescimento do número de abstenções, votos brancos e nulos. Será que já entramos numa democracia de baixa intensidade? Como ela pouco gera de significativo a gente deixa de apostar nela. Isto é perigoso politicamente. Aí é que volta a questão motivadora desta minha crônica sobre nosso cotidiano. Penso que o legado de junho de 2013 foi literalmente ignorado nesta conjuntura eleitoral. Na avaliação de candidatos ele ficou limitado ao número de participantes das manifestações. Trata-se de um grande erro estratégico. Milhões se espelharam naquelas jornadas, como se suas fossem. Aliás, é sempre assim. Não dá para ter toda a cidadania nas ruas! Mas a rua emite poderosos sinais. Eles podem ficar invisíveis, mas voltarão quando menos se espera.
A minha grande questão é porque o momento de “explosão” de junho de 2013 não despertou um real esforço dos partidos hegemônicos na disputa do segundo turno em captar as demandas e em transformá-las em novo imaginário mobilizador, como aconteceu na redemocratização de 30 anos atrás. Falta algo no seio da sociedade civil para que uma nova e poderosa onda de democratização leve a um novo processo de mudanças no Brasil. É surpreendente que na campanha eleitoral quase não se fale de desigualdade social, de direitos de mobilidade, segurança, saúde e educação. Fala-se, sim, de reais feitos passados, mas não dos novos desafios que tais feitos estão produzindo na sociedade brasileira. Em particular falta questionar o modelo de desenvolvimento. Parece que a questão é restrita ao que cada um sabe fazer melhor do mesmo, com uma visão econômica atrasada. Vive-se, por exemplo, uma enorme crise da água, de produção energética, de mudança climática. Mas isto está longe dos debates eleitorais.
Passada a conjuntura eleitoral, quem realmente quer aprofundar a democracia com sustentabilidade deverá começar desde já uma profunda revisão de conceitos e, sobretudo, de práticas sociais. Precisamos renovar nossa cidadania, nossa responsabilidade como cidadãos e cidadãs. Nada como o debate substantivo no nosso cotidiano. É a partir de nossos territórios de cidadania, em nossa diversidade social e política, que movimentos transformadores podem influir na disputa democrática dos rumos do país. Precisamos criar movimentos cidadãos irresistíveis, com forte imaginário mobilizador. O futuro do país e da democracia exige isto. Sempre é o momento de começar, o que não podemos é esperar pois só nós temos o poder real de desencadear um tal processo virtuoso.
Rio, 12/10/14

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