Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 2015
Por Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Ibase

Hoje, 21 de fevereiro de 2015, um sábado, o dia fica mais longo em uma hora. Na verdade, não muda o ciclo ecológico do dia e da noite, apenas muda nossa convenção social sobre a medida do tempo. A regra básica que a humanidade inventou – e se tornou universal – continua sendo de dias com 24 horas, cada uma com 60 minutos e cada minuto de 60 segundos. Mas inventamos o tal horário de verão. Uns quatro meses atrás, também num fim de semana, tivemos um dia de 23 horas, que agora estamos compensando com um de 25 horas, tudo para confirmar o básico. Foi uma mudança determinada politicamente, tudo em nome de economia da energia elétrica. Aceitamos e pronto. E vida continua…como nos lembra a canção.
Trago este fato aparentemente banal para que pensemos exatamente na vida que continua, mas com muitas convenções sociais “naturalizadas”, não refletidas como tais. Acabamos de passar pelo Carnaval, mas muito pouca gente se dá conta o quanto esta festa de raízes religiosas muito antigas marca o nosso calendário: ele fixo e ela, a festa de Carnaval, móvel. Estamos diante de convenções sociais que se combinaram na história e viraram normalidade para nós. E o que é este esdrúxulo mês de fevereiro, de 28 dias, que de quatro em quatro anos fica com 29? Isto num ano com meses de nomes exóticos, de deuses romanos e gregos, uns com 30 e outros com 31 dias. Aliás, este calendário juliano (do Imperador Júlio César) e gregoriano (do Papa Gregório) é expressão da dominação eurocêntrica, pois tem povos, como a China, com seu próprio calendário. Em que sentido o calendário é universal? Por pura imposição de uns povos sobre outros. A Terra com seu satélite a Lua, que continuam a girar em torno ao Sol, nem estão aí para nossas convenções sociais.
O que gostaria de refletir é sobre as muitas convenções sociais que regulam nossa vida. Aliás, dominam, porque tornaram-se poderosos sensos comuns, alicerces construídos de nossos modos de vida, com relações e estruturas sociais e de poder profundamente desiguais. São tais convenções sociais que “naturalizam” o domínio de uns sobre outros e o próprio antropocentrismo nas relações com a natureza, seus ciclos ecológicos, tornando normal o domínio humano sobre ela e a destruição, hoje evidente, de sua integridade como base de vida, de todas as formas de vida.
Uma convenção social estruturante e profundamente dominadora é a moeda. Esta, ao menos, sabemos que é uma convenção, algo politicamente definido e dependente dos tais humores do mercado com reflexos diretos no poder político. Hoje, no Brasil, temos o real. Mas já foi muito diferente, ao menos para todos que tem mais de 20 anos. Aceitamos o real como expressão de relações sociais. Mas não passa de um papel. Qual a diferença entre o papel de R$100 do de R$2, fora o número e a cor da cédula? Por que aceitamos tais papéis e os guardamos com zelo, pois larápios estão a espreita de nossos descuidos ou, pior, armados nos assaltam em busca de tais papéis? E qual a diferença entre real e dólar ou euro? Todos são convenções sociais garantidos por governos e seus bancos centrais.
A vida continua, sem dúvida! Mas no caso da moeda a vida vem eivada pela desigualdade social em que está organizada nossa vida. Ganhamos diferentes quantidades de reais por nosso trabalho, quantidades que tem pouco a ver com suor e dureza do que fazemos. Trata-se de maior ou menor valorização de nosso trabalho por quem paga por ele ou, onde a gente consegue se organizar, pelo poder de organização sindical e barganha de quem trabalha.
Existe o salário mínimo, uma clara convenção social, que regula uns 2/3 da força de trabalho e das relações, inclusive na economia informal. Depois de queda sistemática desde o começo da ditadura em 1964, o tal salário mínimo legal caminhou para certa estabilidade com o real e voltou a subir sistematicamente na última década, mas ainda não chegou aos níveis prévios à ditadura. Lembro isto para evidenciar como as convenções sociais se combinam – moeda e salário – e dependem da realidade do poder político, ou melhor, da clássica correlação de forças políticas nos diferentes momentos históricos.
A inflação – uma clara violação da convenção social sobre a moeda – é, por essência, um mecanismo de desvalorização da moeda e, por extensão do valor do trabalho, em benefício dos poderes ocultos atuantes no tal mercado, com reflexos na política econômica, como assistimos agora no Brasil. A ruptura da convenção social econômica básica é dos poderosos proprietários e capitalistas, verdadeiros senhores donos na sociedade que temos.
Mas é oportuno lembrar aqui algumas outras convenções sociais. Há aquelas herdeiras de um passado de dominação violento e excludente não superado totalmente, pelo contrário, age sorrateiramente. O racismo é uma destas convenções sociais entre nós. Está aí, nos nossos corações e mentes, espelhado nas estruturas sociais, nas cidades, no campo, na cultura, no trabalho, nas práticas do cotidiano. Está institucionalizado e tornado inconsciente. Mas é violento e destruidor. Basta lembrar os assassinatos da juventude negra e pobre de nossas cidades, verdadeiro extermínio praticado pela polícia, em nome da segurança. Segurança de quem? E o que dizer do trabalho doméstico das mulheres negras, com o fim da escravatura (isto mesmo!) chegando apenas agora… e com regulação ainda sendo protelada pelos poderes constituídos.
Temos muitas outras convenções sociais vigentes, evidentes para quem as sofre, mas até negadas. Lembro aqui em particular o patriarcalismo, machismo, sexismo e tudo mais que regula as relações de gênero, entre nós e praticamente no mundo todo. As relações e práticas daí decorrentes se misturam com crenças e religiões, com sentimentos e estereótipos, com vida familiar, amor e violência doméstica. Enfim, está sempre presente, mas, na verdade, tal convenção social é tão pétrea que os avanços para mudá-la, puxada sempre por mulheres, é lenta, geracional.
Três convenções estruturantes da civilização atual têm se mostrado de difícil mudança: a de relações de gênero, a do racismo e a da propriedade privada. Elas tem provocado revoluções no mundo, mas ainda persistem. Analisando-as de modo mais atento poderemos ver sua íntima relação com a sua centralidade no que é hoje o modelo civilizatório dominante, com suas formas de geração de desigualdade social e destruição ambiental. Combatê-las e transformá-las é indispensável. Tal tarefa exige esforço estratégico, de longo prazo, e atenção ao cotidiano, praticando mudanças no aqui e agora.

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