Anistia não é amnésia
Crédito: Marcel Maia/Flickr

Cândido Grzybowski,
Diretor do Ibase e sociólogo

É imanente ao viver humano entrelaçar o presente com o futuro e o seu passado. A aventura e a plenitude do viver é um processo experimentado no cotidiano, renovado a cada dia. Seu caldo temperado mistura o presente, desde tarefas repetidas diariamente até desafios inesperados, com o futuro desejado e possível, bem como com o passado vivido e pensado. Alegrias e dores, lembranças boas e ruins, todas se misturam com sonhos e desejos de um futuro diferente. E nesse turbilhão pensamos, analisamos, criamos significações, adotamos princípios e valores éticos, nos relacionamos e agimos, aqui e agora. Como destino e experiência coletiva, mas extremamente diversos, em termos de territórios, condições, funções e posições, transformamos isso tudo em contraditórias lutas sociais, que se exprimem tanto em processos e estruturas sociais, como em teorias e pensamentos em permanente disputa política.
Esta introdução me parece indispensável para ressaltar o quanto é bem-vindo para a democratização do Brasil o atual debate político sobre a Anistia, de 1979. Por mais contradições latentes que desperte, devemos enfrentá-lo coletivamente, pois está em jogo uma espécie de concertação sobre a nossa história passada, para que possamos sonhar com outro futuro desejável para nossos filhos e netos e pensar o que devemos fazer no presente para torná-lo possível. Diferenças e contradições profundas que nos separaram e ainda dividem não devem impedir tal busca da apropriação da história como expressão do que fizemos junto e da responsabilidade de cada lado.
A verdade elementar e imanente para humanos é que sem memória do passado não há futuro possível. Resgatemos nossa memória! A democracia precisa disso. É inaceitável, como pensam certos setores, que anistia é igual a amnésia. Anistia é perdão político generoso em vista de um bem comum maior a alcançar coletivamente. Não é esquecimento e, menos ainda, perdão do que não pode ser perdoado porque eticamente injustificável, como a tortura e a morte, em qualquer circunstância. Não basta a lei política que perdoa, como nossa Lei da Anistia. Leis assim sempre são bem-vindas e necessárias. Mas tais leis são insuficientes para esquecer o passado, para extrair dele forças para a transformação do presente e para pensar o futuro. Para uma verdadeira anistia, os sujeitos sociais envolvidos precisam anistiar, simplesmente falando perdoar, e ter capacidade de recomeçar, ou sejam, de usar seu passado como força pessoal e coletiva para um futuro diferente. Não é o que está acontecendo. Por quê?
Não se trata simplesmente de buscar a verdade e estabelecer uma memória do passado da ditadura, da luta contra ela e da repressão a ela, e então enterrar tudo, para sempre. A memória é importante, pois é a nossa história, história coletiva, dos que usurparam o poder e estabeleceram uma ditadura, dos que a apoiaram, dos que a ela se opuseram e contra ela lutaram. Muitos até morreram nesse confronto, muitos mais viveram na clandestinidade política ou se refugiaram em outros países. Enfim, muito mais gente do que se sabe até aqui sofreu nesse período obscuro de nossa história comum. Estamos falando de um momento trágico recente. Mais do que isso, estamos refletindo como tratar tal tragédia, que a todos e todas concerne, para imaginar e definir estratégias de construção de um outro futuro.
Temos um buraco obscuro que dificulta pensar o futuro. Se botar luz em tal buraco cria problemas políticos para alguns, aumentam as razões para empreender tal tarefa. Afinal, a democracia como método de construção radical, em vistas do possível em termos de justiça social, ambiental e participação cidadã, só funciona se os fundamentais conflitos constituintes de qualquer sociedade, todos os conflitos, vierem à luz e se tornarem, eles mesmos, a agenda democrática a ser tratada. Os conflitos sociais constroem democracias e sociedades justas, desde que princípios como transparência, verdade e memória não atropelem os princípios fundamentais da liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação. A discordância sobre a ditadura militar em si, seus atos e agentes, pode ajudar-nos, se formos a fundo, e transformar esse nosso enigma – afinal, muitos apoiaram a ditadura e lhe deram legitimidade – em uma nova base para o futuro, não repetindo os autoritarismos do passado.
Hoje, a democracia brasileira, exige um profundo repensar do passado para imaginar o futuro. A Lei da Anistia é um parâmetro legal polêmico, fixado 33 anos atrás. Ela condiciona a busca da verdade e da memória, ou, ao menos, reconheçamos, constrange a busca. Só que para que o perdão – a dimensão fundamental da anistia política – transforme e supere o passado, é fundamental o resgate da memória. Afinal, o que pode ser perdoado e devemos perdoar? Isso implica em perguntar: afinal, o que não podemos e não devemos perdoar? Sem essas respostas, não temos como avançar na democratização e superar nosso trágico passado.

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