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Justiça, política e institucionalidade democrática

Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Conselho Curador do Ibase

As revelações publicadas por The Intercept Brasil sobre a relação nada republicana do então juiz Sergio Moro com o procurador Deltan Dallagnol, da força tarefa do Ministério Público Federal, no processo da Lava Jato, em particular contra o ex-presidente Lula, apontam para a ilegalidade da condenação e, mais, mostram como na surdina dos tribunais pode ser posta em questão a própria institucionalidade democrática. Estamos diante de regras  violadas que comprometem a necessária autonomia e isenção do Poder Judiciário, fundamentais para a democracia.
O estranho é que após a surpresa inicial diante das revelações, sem negar objetivamente seu conteúdo, tenta-se agora ver crime no vazamento de informações de fundamental interesse público ao invés de ver crime no modo como, no caso, operaram os envolvidos no processo contra o ex-presidente Lula. Além do mais, usando aparelhos funcionais, portanto públicos, sem dúvida necessários ao bom desempenho do sistema judiciário, com contas pagas pela cidadania como um todo, para construir e induzir a incriminação e julgamento fora de normas existentes e de padrões éticos de conduta que se espera de tais autoridades públicas. O conjunto das revelações até aqui mostra como opções político-partidárias contaminaram setores do Judiciário, o que explica a seletividade nos processos e condenações da Lava Jato. Esse é o ponto, mas tem mais.
Tudo isso só pode ser analisado no contexto de perda de direitos e de desmonte da institucionalidade democrática que conquistamos com o fim da ditadura militar e que consolidamos na Constituição Cidadã de 1988. Estou apontando para marcos de nossa história recente, incompletos, limitados, mas expressão de uma vontade coletiva naquele momento histórico. Não é neste espaço de uma crônica o lugar de demostrar as contradições estruturais nestes marcos democráticos, tendo no seu DNA um difícil pacto de conciliação de classes profundamente limitador, dada a nossa história de exclusão social e destruição ecossocial. Mas o fundamental foi deixar para a dinâmica democrática resolvê-las através de construtiva prática de luta democrática pautada por princípios considerados pétreos e por direitos e regras comuns de uma cidadania então finalmente reconhecida como devendo ser necessariamente comum para ser pra valer e em busca da maior igualdade possível. Também foram estabelecidos pesos e contrapesos para regular as relações entre os três poderes e a disputa nas oposições e diferenças entre classes.
Tivemos, a partir de então, um grande alargamento do espaço público de debate e organização, com expansão da sociedade civil e suas organizações, emergência de novos atores e movimentos sociais com suas pautas de identidade e direitos disputadas, as novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) ampliando enormemente o direito à comunicação e informação, florescimento da cultura em sua diversidade de formas. Também proliferaram as formações partidárias na disputa do poder político, do local ao nacional, apesar de que muitas sem consistência e viabilidade, mero oportunismo de ocasião. Isso igualmente faz parte do modo de operar das democracias, que podem se proteger. Mas o mais importante é o fato que o poder real continuou naquele 1% dos “donos de gado e gente”, que se apropriam dos recursos reais e simbólicos, que submetem o poder político no Brasil a seus interesses, ainda mais  num mundo que se tornou globalizado e financeirizado pelo capitalismo neoliberal. Assim, ao fim e ao cabo, estamos perdendo a democracia e caminhando a olhos vistos para a barbárie, aqui no Brasil, na América do Sul e, de certo modo, no mundo inteiro. Não conseguimos enfrentar com mudanças estruturais a nossa profunda desigualdade originária e a economia predatória que a alimenta – matriz de nascimento da sociedade brasileira –  marcada pela conquista, colonialismo e dependência, racismo e patriarcalismo, intolerância e violência assassina. Os avanços, e os houve, foram medíocres de uma perspectiva democrática substantiva, capaz de apontar algo melhor para gerações futuras. Os privilégios estão no centro, como eixos estruturantes. Os direitos iguais de cidadania são ainda um ficção. Assim, a democracia vem perdendo vitalidade e caminha perigosamente para o colapso. Poderemos evitar?
Esse contexto merece diagnósticos muito mais  profundos para nos alertar e fortalecer a  resistência e a iniciativa de ação cidadã diante do que está realmente ocorrendo na derrocada de nossa democracia.  Precisamos olhar para a estrutura por trás e situar o momento da relação entre Judiciário, Política e Executivo em nosso país. As revelações que estão vindo à tona, graças ao corajoso e profundamente republicano trabalho do The Intercept Brasil, podem parecer simples sinais sem importância dos deslizes de altos funcionários no Judiciário. Mas assim não é, dado o terremoto político desencadeado pela Lava Jato e suas consequências sobre como estão sendo condicionadas as lutas políticas democráticas e, também, sobre o próprio processo necessário de combate à corrupção. Agora vemos o quanto o próprio Judiciário está contaminado por interesses que podem destruir fundamentos democráticos.
Todas e todos que nos  pautamos por princípios e valores de uma democracia ecossocial acima de tudo devemos reconhecer o quão profundo está enraizado o câncer dos privilégios de classe acima dos direitos em nosso dia a dia e na nossa institucionalidade democrática. Por isso, saúdo as revelações como algo fundamental neste momento e reconheço que a esperança não morreu. “Amanhã vai ser outro dia…”
 
Rio, 18/06/2019

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