Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase

Chegamos a um momento de inflexão estratégica na conjuntura brasileira. Até aqui, no campo ideológico e mais visível, predominaram as bravatas do valentão Capitão Bolsonaro, de seus filhos 01, 02 e 03, e dos obscurantistas ministros inspirados em Olavo de Carvalho. Trata-se do grupo disposto a desencadear uma “guerra cultural” entre nós, com liberdade para matar até, em defesa de costumes e valores conservadores na sociedade brasileira, invocando “Deus, pátria, família e propriedade”.  Estrategicamente camuflada na reforma da previdência, a agenda real é o mais descarado ultraliberalismo, de desconstrução constitucional de direitos de cidadania e das políticas públicas que, com participação, visam à busca de maior igualdade. Trata-se de uma clara agenda de desmonte do Estado democrático de direitos para torná-lo um agente público de subjugação total de tudo e de todos à ganância colonial e predatória das grandes corporações capitalistas, das finanças, do agronegócio e do extrativismo, renunciando à própria soberania.
Qual é o sinal mais evidente de inflexão na conjuntura política? Não tenho dúvidas em afirmar de forma enfática que a manifestação nas ruas na última quarta-feira, dia 15 de maio, pelo direito à educação, com emblemáticos nodos em todas as capitais e em muitas outras cidades do país, é sinal de uma onda cidadã que pode vir por aí. A indignação diante das propostas do governo “velho” de menos de cinco meses só não vê quem usa a mesma viseira estreita do capitão e de seus cúmplices. Trata-se apenas de uma mudança simbólica, mas é por aí que a resistência pode sair das trincheiras e que podem começar as mudanças em qualquer democracia viva.
Hegemonia se conquista e se exerce no campo de princípios éticos, valores, visões e propostas, com projetos de futuro, captando sentimentos e percepções que grassam no seio da sociedade civil. Momentaneamente, no vazio da crise econômica e de descrédito na política, acabou conquistando vitória eleitoral em 2018 o discurso moralista, conservador, patriarcalista e autoritário de Bolsonaro, diferente de todos os outros candidatos.  Mas bastou pouco tempo para que tal hegemonia eleitoral começasse a ruir e revelar o seu verdadeiro caráter de ataque aos direitos e à democracia para todos.
Em minha visão e análise, reconheço que, em última análise, a cidadania em sua diversidade é a força com poder instituinte e constituinte. Suas expressões nas diferentes conjunturas são sinais fundamentais de humores, dissabores e desejos que circulam no seio da sociedade civil. Mas a mobilização pública, como a ocorrida, já é um ato de vontade política que se cria numa combinação de visões e ameaças concretas presentes na conjuntura. No momento, destaco o emblemático que é para qualquer sociedade a defesa do sentimento de pertencimento e de futuro que propicia exatamente a cultura. O ataque desferido pelo atabalhoado e autoritário governo de plantão contra a educação despertou o sentimento de “basta!”. Já durante o carnaval apareceram os sinais de resistências culturais profundas às mensagens bélicas dados pelo governo, de forma irônica, claro, como é própria da grande festa brasileira. Agora, estamos saindo das trincheiras e indo à luta cidadã aberta. Aonde vamos parar? Ainda é cedo para responder. O fato é que a indignação extravasou e a porteira para a rua da cidadania está aberta. Basta estar no meio do “ruído”, lá na vida da rua, para ver e sentir que surgiu algo forte no seio da sociedade civil, acima de representantes políticos e poderes constituídos.
De toda forma, vale a pena enfatizar que este promissor começo é apenas um começo promissor, plantinha desabrochando em terreno de muitas hostilidades, do local ao nacional e ao mundial. Nenhum dos “pacotes de maldades” saiu da pauta por enquanto. Para lembrar, pesam sobre nossas cabeças propostas de liberação de armas e direito de matar de Bolsonaro, projetos de institucionalização de uma segurança repressiva pelo ministro Moro, a destruição da previdência solidária em favor da capitalização do nosso futuro por Guedes e sua ameaça de ruptura do pacto federativo, a “escola sem partido”, o combate ao “marxismo cultural” e o recente corte no orçamento da educação do Ministro da área.
A flexibilização da legislação trabalhista já ocorrida e a que se quer propor ainda mostram a sua cara cruel nos números de trabalho e emprego. Importa reconhecer que estamos vivendo uma profunda transformação no paradigma prático e conceitual da relação social “trabalho” nas sociedades capitalistas como um todo. Como vamos enfrentar isto é, talvez, a maior questão de cidadania pela frente. Está em jogo o futuro de nossos filhos e netos e de seus filhos e netos.
O fato é que precisamos repor, de forma renovada, no centro do ativismo cidadão os emblemáticos valores de direito à liberdade, à igualdade, à diversidade, à solidariedade e à participação. É nesta base que poderemos construir outro futuro. Todos estes valores estavam nos unindo no último dia 15, cimentando, por assim dizer, as individualidades extremamente diversas em raça, gênero e idade, até visões políticas em favor de uma grande causa comum. Por menores e frágeis que sejam as plantas recém nascidas, elas carregam um grande futuro. Cabe a nós cuidar da plantinha que plantamos, aqui na planície, sem muito olhar para o Planalto endoidecido. Temos legitimidade e podemos crescer em força cidadã para mudar isto tudo. Já fizemos isto no passado, por que não agora?
Rio, 20 de maio de 2019
 

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