Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase

Em minhas análises, com certa constância, acabo me debruçando sobre a questão dos “invisíveis” em nossa sociedade. São grupos humanos concretos, variáveis em tamanho conforme os territórios em que habitam e os momentos históricos da sociedade, condenados pelos processos e estruturas sociais vigentes a viver à margem, em estado de exclusão social, destituídos de cidadania e das condições mínimas de dignidade humana. Na verdade, eles estão aí, mas não são reconhecidos como parte e por isto sistematicamente invisibilizados de algum modo pelos padrões de “normalidade” legitimados e dominantes. Por isto mesmo, tendem a ser desprezados, reprimidos e até assassinados. As expressões genéricas para denominar tais grupos são reveladores de um senso comum contaminado pela dominação e preconceito vigentes. Basta lembrar aqui o uso corrente de conceitos pejorativos como “miseráveis”, “ralé”, “escória”, “plebe”, “vulgo”, “gentalha”, “povinho” e por aí vai. Seria gente não merecedora de se “integrar” ao convívio social, político e cultural, dada a sua situação econômica e modos de vida.
Acontece que estamos diante de relações, estruturas e processos contraditórios constitutivos das sociedades, produzidos historicamente. Assim como foram criados e “normalizados”, podem ser denunciados e transformados ou, pelo contrário, aprofundados e ampliados. Socialmente, nada é sólido ao ponto de não mudar. As sociedades se produzem e reproduzem movidas pelas contradições em sua expressão política histórica de disputas e de lutas sociais entre opostos e diferentes, processo tenso entre, de um lado, a manutenção da dominação, da exploração, dos privilégios e da exclusão e, de outro, a busca por liberdade, emancipação, direitos iguais e inclusão plena. Aprendi que esta é a grade de leitura fundamental para entender a invisibilidade a que amplos setores são condenados em qualquer sociedade.
Desde os anos 1980, começando pela análise da emergência de grandes movimentos sociais, passei a radiografar e dissecar a lógica integração x exclusão que está no centro da luta política no Brasil saindo da ditadura, mas que vale para qualquer sociedade. Nos anos 1990, já integrado ao Ibase, passei a ampliar meu olhar para os e as que pareciam sem capacidade de lutar contra a sua invisibilidade. Foram os projetos de crianças de rua e os miseráveis e famintos vivendo nas calçadas, a maioria negros e negras, que “passavam em branco” nas estatísticas oficiais (da campanha para declarar a própria cor no Censo Demográfico de 90/91), os indígenas e os sem terra, que o Ibase priorizou como foco de pesquisa e ação. Aprendi que, para enfrentar as estruturas, relações e processos de invisibilidade, quem a sofre precisa se organizar e lutar e quem luta por democracia transformadora baseada em princípios éticos de liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação não pode deixar de apoiar prioritariamente tais lutas.
Mas a questão é mais extensa e complexa nas formas como se manifesta econômica, social, cultural e politicamente. Com a aventura do Fórum Social Mundial, alarguei e radicalizei minha própria perspectiva como analista e ativista. Descobri o quão estrutural são para o capitalismo global tanto o eurocentrismo e a colonialidade, como a dominação e exploração do patriarcalismo e do racismo. Ou seja, a negação do direito à diversidade de povos e culturas e a invisibilidade das desiguais relações raciais e de gênero, combinadas à exploração do trabalho e acumulação em escala planetária, são pilares do sistema capitalista. Isto me levou a buscar formas mais consistentes de pesquisa-ação para contribuir na busca de visibilidade e fortalecimento de resistências e emergências de “cidadanias” no contexto da globalização economicofinanceira do neoliberalismo. Através do Ibase, ainda, me engajei na viabilização teórica e metodológica de um sistema de indicadores de cidadania baseado na totalidade dos direitos humanos com capacidade de virar instrumento de luta da cidadania pela sua emancipação e prática da liberdade com igualdade na diversidade.
Ando pensando nestas questões pois estou empenhado num esforço de reavaliar criticamente a minha própria trajetória, revendo análises e textos escritos sobre cidadania planetária no contexto da globalização. No último fim de semana, trocando ideias a respeito do projeto pessoal com um amigo e parceiro de longa data, o Ivônio Barros Nunes, a questão de produção política de “invisibilidades” ou de  “cidadanias invisíveis” apareceu como incontornável para o meu projeto. Levando em conta o que se passa no Brasil, na região e no mundo todo, com avanço do trabalho precário, com a destruição de direitos e o desmonte de políticas, a perda de vitalidade da democracia, o crescimento de formas autoritárias beirando o fascismo, com fundamentalismos, racismos, xenofobia e violência, destruição ecológica e mudança climática, caminhamos a passos largos para a barbárie da exclusão, invisibilização e morte. O caso do fechamento de fronteiras e repressão das migrações na atualidade é emblemático. Mas nem precisamos ir tão longe para entender as novas formas de invisibilização em curso. Basta olhar com atenção para a “guerra cultural” e as políticas de desmonte de direitos que estão sendo propostas e implementadas pelo governo Bolsonaro no Brasil. A invisibilização de hoje rima com fascistização de emergências e resistências da cidadania com perspectiva ecossocial, de todos os direitos humanos e dos direitos da natureza para todas e todos, sem discriminações. Qual das políticas até agora propostas por Bolsonaro e o poder real que está por trás dele que não visa a negação de igualdade de direitos com uma estratégia política de invisibilização? Deixo a quem ler esta minha crônica a tarefa de encontrar alguma iniciativa  nos seis meses do atual governo que não tenha tal potencial destrutivo do pouco que conseguimos fazer em termos de democracia includente, de ampliação de direitos, de proteção da vida e da integridade do bem comum natural.
A globalização nos deu, contraditoriamente, uma consciência comum de humanidade e destino, na diversidade de povos e culturas, num planeta único pela integração de sua diversidade e compartilhamento como bem comum maior da vida, de todas as formas de vida. Também, contraditoriamente, mesmo tornadas poderosas formas de acumulação e dominação, as novas TICs e as redes nos conectam e reforçam a consciência de humanidade e destino comum. No entanto, nunca o mundo foi tão desigual e excludente de um ponto de vista de direitos da cidadania planetária, apesar da maravilhosa diversidade de formas de ser e viver que inventamos. Por isto, ser “invisível” hoje  e ter a cidadania negada resulta de uma intencionalidade e prática política do 1% contra os 99%. Estamos diante de políticas autoritárias de invisibilização, exclusão, guerra e morte da maioria da humanidade, condição para a continuidade da um sistema de acumulação de riquezas ao custo da exclusão social e da destruição da integridade do planeta.
Temos diante de nós uma tarefa urgente, difícil e longa, mas não podemos esperar. Precisamos nos reinventar como cidadania ativa, construir imaginários agregadores e mobilizadores, disputar sentidos e rumos no interior da sociedade civil, nosso terreno estratégico. As políticas de invisibilização se imporão se nossas resistências e propostas não avançarem no aqui e agora.
Rio, 11/7/2019
 

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