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Redução da Maioridade Penal – a misoginia e o racismo apontando a responsabilidade das mulheres

Por Leticia Alves Maione[1]

“Ela trazia o coração dolorido. Era como se tivesse dentro do peito um grande pote de barro, no qual armazenasse todas as pessoas queridas, e esta vasilha um dia tivesse quebrado, partido.
A mulher sofrera muito com a partida da filha, depois com a do filho.
Antes, havia vivido o pesar da passagem de seu homem, naquela tarde clara e ensolarada.
E foi acumulando idas, partidas, ausências. (…) Se tivesse que ser só, que sozinha fosse. Se tivesse de se abraçar com os seus próprios braços, ela mesma criaria o seu próprio anelo, e se auto-abraçaria, até que reencontrasse os filhos e os abraços deles abraçassem os abraços dela.”  
Conceição Evaristo, 2003.[2]
Anda difícil discutir sobre a redução da maioridade penal. A grande mídia vem conseguindo comunicar e potencializar a postura  que é favorável à redução, principalmente quando o faz indiretamente, através de notícias que abordam a criminalidade no Brasil e ignoram a sociedade extremamente desigual em que vivemos: machista, racista, classista, adultocêntrica, transfóbica e heteronormativa.
O que temos visto é a manipulação proposital dos conteúdos de (des)informação na televisão para passar a mensagem de que há muita violência e morte na sociedade, traçando um perfil específico para quem a comete e precisa ser punid@ – o povo negro e pobre, especialmente, @s jovens negr@s. Temos, então, uma inversão da realidade. Pois  quem sofre com a violência e as mortes diárias causadas pela militarização da polícia e do Estado, a insegurança, o assédio moral e sexual, os estupros, a deteriorização da saúde física e mental, a invasão arbitrária de casas que ela traz? Quem sofre são aquel@s que mais tem o seu acesso a direitos negado: o direito à educação anti-sexista, anti-racista e anti-heteronormativa; à saúde sexual e reprodutiva; à moradia, cultura e lazer; a condições de trabalho dignas e livres de opressão; ao direito à cidade e ao campo, a uma vida sem violência.
O debate sobre a redução da maioridade vem acontecendo com uma desigualdade de recursos muito grande. Além de todos os espaços e meios que o fundamentalismo político possui para distribuir desinformação, a perspectiva misógina e racista que estrutura o nosso pensamento, e através da qual a maioria das relações na sociedade são construídas, são referências determinantes para que a maioria das pessoas sejam favoráveis à redução. Como feminista e parte do movimento de juventudes, venho participando de atividades que estão me fazendo pensar como há uma relação direta entre as relações de gênero, a responsabilização das mulheres pela criação e educação d@s filh@s e o racismo presente na falta de reconhecimento da maternidade de mulheres negras.
Há toda uma trajetória em nosso país e continente da luta das mulheres por justiça frente à violência de Estado, que assassina e prende suas e seus filh@s. Mas também é preciso notar que, em nosso contexto brasileiro e latino-americano, assim como as classes socioeconômicas, o gênero têm cores e raças. Nesse sentido, devemos reconhecer que os mandatos de gênero, entre eles a exaltação da maternidade, não vêm da mesma maneira para todas as mulheres. Se de forma geral, as mulheres são educadas e socializadas de certo modo para que desejem e acreditem na centralidade que a maternidade deve ter em sua vida, contraditoriamente, muitas mulheres negras se deparam com a falta de reconhecimento do seu direito à maternidade e a criminalização desse. A todo tempo, as mulheres sofrem ameaças de terem filh@s, net@s, sobrinh@s, irm@s, a quem dedicam boa parte de suas vidas, levad@s pelo Estado – que prende, mata, exclui e não reconhece a cidadania da maioria negra da população brasileira.
No Rio de Janeiro, a participação e o protagonismo de mulheres negras que perderam seus filhos pelas mãos do Estado têm sido muito importantes na articulação do movimento contra a redução, principalmente, no espaço da Frente Estadual do Rio de Janeiro Contra a Redução da Maioridade Penal. E mais ainda, tem sido fundamental o modo próprio através do qual elas têm se organizado para denunciar as políticas de genocídio negro, atualizadas recentemente com a ocupação militar das favelas, mas que há muito tempo já se desenvolve por meio de chacinas e grupos de extermínio presentes em diversos territórios. A organização de mulheres negras em movimentos e redes contra a violência policial e de Estado é uma resposta de resistência cotidiana ao racismo e machismo que enfrentam subjetiva e objetivamente na sociedade brasileira. Sua atividade e mobilização perpassa por construir processos políticos ao mesmo tempo de dimensões públicas e pessoais, através do acolhimento, apoio mútuo e de relações político-afetivas para a transformação da sociedade machista, racista e capitalista.
Os corpos, a sexualidade, os projetos de vida, o direito a decidir e a maternidade, especialmente das mulheres negras, são vistas como alvo de políticas de controle da população e genocídio. Exemplos disso são as intervenções irreversíveis, invasivas e violadoras que o sistema público de Saúde promove em relação à saúde e aos corpos das mulheres. As esterilizações forçadas ou sob coação são práticas altamente difundidas, em detrimento do acesso e a escolha por outros métodos contraceptivos, como a pílula. Também o são a tortura física e psicológica feita com as mulheres no momento do parto – a negação de analgésicos e o longo tempo de espera durante o trabalho de parto estão entre as violências mais relatadas pelas mulheres negras.
Para além disso, gostaria de apontar que acredito que essas não são violações pontuais de cert@s profissionais. Elas integram, em si mesmas, o funcionamento do sistema público de Saúde, que estruturalmente negligencia o acesso e a atenção integral à saúde das mulheres, em especial das mulheres negras. Como aponta Jurema Werneck: “(…) no momento, populações inteiras estão expostas a condições de destituição material e simbólica que inviabilizam o acesso e a realização dos procedimentos científicos de manutenção da vida, independente de seu grau de complexidade.”[3] A esse quadro e política sistemática de violações no campo da saúde podemos entender como uma política de genocídio da população negra, com métodos específicos para divers@s sujeit@s negr@s.
O direito ao aborto, outra pauta importante de direitos e saúde das mulheres, só é defendido na perspectiva de controle do Estado sobre as vidas que não devem se perpetuar.  Em 2007, o então governador Sérgio Cabral, declarou por que era favorável ao aborto como serviço público, e ao meu ver, como política de genocídio: “Interrupção da gravidez tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal”[4]. Nesse momento, Cabral falou enquanto representante e gestor público e não houve uma voz dissonante do seu meio que viesse a público  discordar desse posicionamento.
Combinados, o racismo e o machismo, ao mesmo tempo em que travam diferentemente a autodeterminação das mulheres negras em termos de seus direitos sexuais e reprodutivos, responsabilizam mais a essas mulheres do que à maioria das mulheres brancas pelo cuidado e a educação das crianças, pela reprodução das condições que tod@s necessitam para viver. Trata-se da herança histórica da escravidão na manutenção do racismo em nossa sociedade para os privilégios de pouc@s. Sem dúvida, a dupla jornada de trabalho é mais pesada para as mulheres negras. Para sustentar a si e as suas famílias em uma sociedade de acessos extremamente desiguais, se deparam frequentemente com a realidade de ter que cuidar d@s propri@s filh@s, d@s filh@s de outr@s, cuidar de toda uma sociedade. A mesma sociedade que espera que mulheres negras se ocupem disso pelo fato das mesmas encontrarem poucas oportunidades educativas, de trabalho e sócio econômicas.
Nesse ponto, não podemos deixar de responsabilizar o Estado na manutenção das relações desumanas de trabalho para as mulheres. Ele necessita construir uma proposta para o cuidado, com políticas e serviços públicos, se amparando na perspectiva feminista, anti-racista e geracional. Rosario Aguirre e Fernanda Ferrari consideram na construção do sistema de cuidados do Uruguai que: “o direito ao cuidado e a cuidar(se) deve ser considerado um direito universal de cada cidadã ou cidadão, não sujeit@ a determinação específica. (Pautassi, 2010, pág. 83).” Elas ainda determinam que: “para garantir esse direito, requere-se gerar políticas públicas (…), tomando em consideração o compartilhamento do cuidado em tempo e custos entre as distintas esferas provedoras e entre mulheres e homens”[5]  – e  devido a nossa história de colonização e exploração do povo negro e indígena, cabe exigir – e entre as raças. Esse é um entendimento importante que devemos apontar em termos de políticas públicas que exigimos em pé de igualdade com as políticas públicas de saúde, educação e trabalho. As mulheres, e sobretudo as mulheres negras e pobres, necessitam parar de pagar a conta do Estado no que diz respeito à reprodução da vida e do fornecimento das condições de sobrevivência d@s pessoas e para a produção capitalista. Além do Estado, todos os setores da sociedade necessitam se reeducar e reorganizar para entender e desconstruir as relações machistas e racistas de cuidados.
Há duas semanas, vi Dona Jane gritar que não havia abandonado o seu filho, como a grande mídia havia acusado. Seu filho, jovem negro detido sob acusação de cometer assassinato, contava com álibis que o inocentavam do crime. Mas para o Estado e a nossa sociedade racista, ele já é suspeito e culpado por ser jovem negro. Dona Jane é também várias vezes suspeita e culpada por ter gerado e cuidado de uma vida negra. É no corpo das mulheres que se trava essa batalha e decisão. É o corpo das mulheres que tem sido posto na luta pela garantia da vida: a sua própria, a de suas famílias, a de todas as pessoas.
Dona Jane, enquanto mulher negra, é parte dessa batalha cotidiana. Foi a principal acompanhante e apoiadora de seu filho nas diversas etapas de sua vida, com todas as dificuldades e violações que, enquanto jovem negro, enfrentou por parte do Estado. Tentou acessar o Programa Caminho Melhor Jovem, resposta do governo estadual à pressão política de movimentos das juventudes negr@s, de favelas e periferias[6]. Com quase dois anos de lançamento, o programa não tem apresentado atuações locais relevantes que oportunizem mudanças reais na vida d@s jovens, como prometia. A grande procura registrada pelo alto índice de cadastros no Caminho Melhor Jovem, confirma a forte demanda das juventudes, bem como de tod@s morador@s das regiões de favelas as quais estava destinado o programa, por serviços de educação e saúde. Nesse sentido, não somente @s sujeit@s desse programa sofrem e se frustram novamente com a criação de expectativas por parte do Estado, mas também as mulheres, mães, tias, avós e irmãs que são responsabilizad@s pela sua educação e estão ligadas afetivamente a el@s.
Por isso, precisamos entender que há muita coisa em jogo quando pautamos A NÃO REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL.
Nessa luta, queremos o fim do racismo, do genocídio negro e da juventude negra. Queremos  outro modelo de sociedade, onde a educação e a criação de seres human@s não sejam responsabilidades unicamente das mulheres. Para isso, precisamos de políticas públicas com perspectiva de gênero, raça e sexualidade construídas por e para as juventudes, pois também muitas das mulheres sobrecarregadas com a maternidade são mulheres jovens e devem ter o direito ao controle de suas vidas. Queremos uma sociedade onde todas as mulheres, ao decidirem ser mãe, possam viver de maneira prazerosa a sua maternidade, ao longo de toda sua vida. Exigimos que a experiência de gerar a vida não signifique injustiça social e racial para as mulheres, marcando sua vida com perdas de pessoas queridas pelas quais são responsabilizadas e danos em sua saúde física e psíquica.
[1]Com a colaboração es de Marina Ribeiro, Rachel Barros e Monique Cruz, do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro.
[2]EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.
[3]WERNECK, Jurema. Algumas considerações sobre racismo, sexismo e a tecno-eugenia. HBS, México, 2005. Disponível em: http://www.criola.org.br/artigos/artigo_racismo_sexismo.pdf
[4]“Cabral defende aborto contra violência no Rio de Janeiro”. Disponivel em: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html
[5]AGUIRRE, Rosario; FERRARI, Fernanda. La construcción del sistema de cuidados en el Uruguay- En busca de consensos para una protección social más igualitaria. Nações Unidas, 2014. Disponível em:  http://www.mides.gub.uy/innovaportal/file/26134/1/sps192_construccion_sistema_cuidados_en_el_urugay_16_de_abril_2014_tudh.pdf
[6]“Rio: mãe de suspeito de matar médico nega ter abandonado o filho”. Disponível em: http://correiodobrasil.com.br/noticias/rio-de-janeiro/rio-mae-de-suspeito-de-matar-medico-nega-ter-abandonado-o-filho/762543/

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