Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

A vitória de André Manuel López Obrador (AMLO) nas eleições de primeiro de julho último, no México, é um fato político que merece particular atenção, nesse nosso mundo de múltiplas contradições. Que impacto este fato pode ter? No início do século XX explodiu, exatamente naquele país, uma revolução de base popular contra as estruturas de dominação e exploração herdadas da conquista e da colonização, que a independência política não havia alterado. Com uma população majoritariamente camponesa e de origem indígena, despossuída de suas terras, o foco principal das lutas de então foram a estrutura agrária e a elite latifundiária, base do poder político. De maneira um tanto fantasiosa, foram vulgarizadas as figuras de líderes fantásticos e inspiradores, como Zapata, e meio fanfarrões, mas fundamentais, como Pancho Villa. Foi uma revolução dramática e violenta, que antecipou a de 1917, na Rússia, ambas vivamente retratadas pela genialidade do jornalista John Reed, dos EUA. Sem a revolução dos anos 1910 seria impossível entender o governo do general Lázaro Cárdenas dos anos 1930, aquele que institucionalizou o México moderno com o PRI – Partido Revolucionário Institucional – e que criou as condições para seu domínio por oito décadas na história política mexicana. O PRI, hoje de Piena Neto, é o grande derrotado por AMLO, marco de um fim e de um novo começo, num mundo totalmente diferente daquele de um século atrás.
O López Obrador (AMLO) foi eleito com 53% dos votos, com uma vantagem de mais de 20% em relação ao seu principal opositor (mas em torno de 33% não votaram). Foi, literalmente, carregado por uma grande onda de cidadania, o MORENA – Movimento de Renovação da Política, que representa, ao menos, um terço da população mexicana. O MORENA é um partido movimento, tipo o PODEMOS da Espanha, com perfil de centro-esquerda. O fundamental foi a hegemonia conquistada pelo MORENA no seio da sociedade civil mexicana, criando uma mobilização irresistível. Neste caso, prevaleceu o que pessoalmente considero instituinte e constituinte em termos políticos: a cidadania ativa. Sem dúvida, AMLO foi uma figura central na construção do MORENA. Dissidente do PRI, por 20 ou mais anos vem construindo uma história de líder emblemático das mudanças no México, tendo disputado e perdido por duas vezes. Foi prefeito da terceira maior metrópole do mundo, a cidade do México, e foi governador de Tabasco, onde defendeu um grande movimento de desobediência civil contra o aumento descomunal das tarifas elétricas. Enfim, é alguém que tem história de compromisso democrático com as forças transformadoras e de garantia direitos de cidadania iguais para todos.
AMLO vai enfrentar os desafios internos conhecidos diante de uma estrutura esclerosada de poder, patriarcal e patrimonialista, ancorada em instituições públicas totalmente corrompidas, das máfias e da violência assassina do narcotráfico, financiadas de forma transnacional, sobretudo por dinheiro norte-americano. O programa de governo de centro-esquerda de López Obrador, com promessas de reforma e de busca de justiça social, depende de uma realidade de poder político totalmente ancorado nas grandes corporações e em tudo o que se fez nas últimas décadas em subserviência aos EUA e aos acordos do NAFTA (North America Free Trade Agreement). Mais do que em outros países, o estrago feito no México pelo neoliberalismo é monumental. O país virou um neodependente com as empresas “maquiladoras” (que maquiam os produtos) para exportar aos EUA, aproveitando a total precarização das relações de trabalho que os tratados permitem. Hoje, 73% das exportações mexicanas se destinam ao poderoso vizinho do Norte. Até onde irão as concessões do governo de AMLO? Conhecemos o quanto é traiçoeira esta questão de governabilidade, que pode impedir a onda do MORENA de frutificar e fragilizar o poder real do capital e dos donos, também lá, de gente e de tudo, matando e muito.
Para a região latino-americana, o exemplo da vitória da cidadania mexicana é estimulante. Nós, brasileiros e brasileiras, que estamos em processo eleitoral, podemos tomar este fato histórico como um tonificante. Vitórias sempre são possíveis, mas exigem ideário mobilizador e determinação, como o MORENA demonstrou agora diante da insuportável situação de miséria e pobreza, violência e governo de costas para a sociedade do México.
Os desafios do novo governo serão monumentais. Como de praxe em tais situações, a mensagem de AMLO foi conciliadora. A própria aliança de MORENA com outras forças políticas para chegar a se impor eleitoralmente passou por acordos nada confiáveis. Mas nada como um dia após o outro, pois em processos históricos democráticos os acordos são sempre provisórios e tudo pode mudar. A variável central é o potencial do MORENA como movimento-partido e, sobretudo, a cidadania ativa que é seu centro nevrálgico. Sempre é a cidadania que pode levar a mudanças, as eleições são apenas um importante “acidente” neste processo.
Olhando com uma perspectiva planetária, na difícil conjuntura de marcha mundial para a barbárie, casos como a vitória de amplo movimento cidadão num país importante, como o México, são um alento. Afinal, é um México cidadão que o mundo precisa. Mas, diferentemente da maioria dos países, a localização geopolítica do México vai exigir da cidadania planetária uma vigilância constante e determinada. Afinal, os EUA do maluco Trump estão logo ali, na fronteira, sendo o México o único país no mundo subordinado à vigilância militar direta do comando central do poder imperial americano, em Washington. Com uma fronteira de mais de três mil km no Norte, tendo experimentado a primeira intervenção militar dos EUA, entre 1846 e 1848, e, no final, perdido metade do seu território – o estado do Texas e junto o Novo México, Colorado, Arizona, Nevada, Utah e Califórnia – o México tem o que temer com as “trampas” do vizinho, nada amigável e superarmado. Hoje, o Trump até quer construir uma grande muralha na fronteira para impedir a migração… com financiamento do próprio México! Alguém já escreveu sobre o México como tendo que conviver com o drama de estar “Tão longe de Deus e tão próximos do EUA”. Um enorme desafio!
Porém, é um alento que a democracia possa produzir algo como o caso mexicano neste mundo de perda de sonhos. Dá ânimo para a luta cidadã em diferentes países da região. Não acredito que seja possível, no imediato, uma inversão da onda de retrocessos que estamos sofrendo internamente nos diferentes países, com claros tentáculos pelo mundo inteiro. No entanto, caminhos alternativos se fazem ao andar. Algo fundamental se moveu no México de memorável história para o mundo. Como os mexicanos, precisamos acreditar que até nas mais adversas situações outro mundo é possível. Os sonhos e ideais sempre cabem, mesmo em meio à barbárie.
 
Rio, 09/07/2018
 
Nota – Nas próximas semanas estarei fora do Ibase e não poderei escrever minhas crônicas semanais. Volto no dia 13 de agosto. Até lá!

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