Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

Neste ano de 2018, iniciei um conjunto específico de crônicas sobre a necessidade de nos debruçarmos na busca de novas narrativas com sentido mais estratégico de transição transformadora do atual paradigma de desenvolvimento dependente do crescimento contínuo, puxado pelas forças do livre mercado. Com seu produtivismo e consumismo voltado à acumulação, hoje em escala global, ele tem gerado enorme concentração de riquezas e desigualdade social e, ao mesmo tempo, destruição ambiental e mudança climática. Para mudar antes que seja tarde, se torna fundamental construir alternativas ao desenvolvimento, partindo de visões, iniciativas, resistências e insurgências presentes de variados modos nos interstícios sociais, econômicos e culturais, nos diferentes quadrantes do mundo. Uma tarefa urgente é sistematizar e organizar as diversas alternativas e disputar no espaço público com novas narrativas sobre outros mundos possíveis, outros modos de viver e ser humanidade, para além das visões e propostas excludentes e destrutivas da globalização capitalista de nossos dias. Para isto, subscrevo aqui uma afirmação categórica de Alberto Acosta para sairmos do labirinto capitalista: “O desafio está posto: construir desde baixo, desde as comunidades e desde a Pachamama (Mãe Terra), propostas que afirmem a reprodução da vida, não a do capital, nem a do poder” (em tradução livre).
Na série de crônicas a que me dedico de modo especial, busco mostrar a perspectiva do cuidado, particularmente forte no seio dos movimentos feministas, mas não restrito a eles.  O cuidado como concepção e prática social esta presente em todas as sociedades, em suas várias dimensões: ética, filosófica, econômica e política. Comecei falando da radicalidade da economia do cuidado e continuei com uma crônica sobre necessidade de formar redes de diálogo estratégico no sentido de construir novas narrativas. Continuando, tento aprofundar alguns aspectos de princípios e valores éticos articulados ao cuidado.
A economia fundada no cuidado entre seres humanos e deles com todos os seres vivos, bem como com o conjunto de sistemas ecológicos que garantem a integridade da natureza, depende de potentes imaginários mobilizadores e transformadores do que é hoje dominante. Isto implica em profunda revisão de modos de ver e pensar, de categorias analíticas e de práticas, de princípios e valores que os sustentam. O ideal deixa de ser o desenvolvimento econômico baseado no crescimento contínuo e passa a ser uma economia do cuidado, capaz de gerar o necessário e o suficiente para todos, nos limites da preservação da integridade do Planeta para gerações futuras. De uma perspectiva do cuidado, muda totalmente a percepção, a valorização e a organização social do trabalho, libertando-o das amarras da exploração e do domínio patriarcalista e capitalista. A ciência, a inovação e a tecnologia do gênio humano, ao invés de visarem dominar e até destruir a lógica natural, com o cuidado passam a operar como força ecossocial que potencializa sem destruir o que a própria natureza oferece. Os bens comuns só se tornam comuns sob o cuidado coletivo na sua gestão.
São muitas as questões que se levantam a partir da perspectiva do cuidado no centro da economia. Aqui me limito a destacar particularmente dois princípios éticos correlatos a ele. Tratam-se dos princípios de compartilhamento e de convivência, sem os quais o cuidado não pode se tornar lógica estruturante de uma nova economia.
Aqui se torna imprescindível reconhecer que viver é fazer parte de uma teia de interdependências entre seres vivos de todas as espécies e destes com a biosfera. Viver é sempre compartir, ser parte de tal teia. Como invenção humana, a economia nasceu essencialmente como gestão desta interdependência na troca com os outros seres vivos e a natureza. E o cuidado compartido entre os diferentes seres vivos é condição indispensável para que a própria teia de interdependências da vida seja sustentável. A começar pela procriação, ato compartilhado, uma espécie de imperativo da vida. Mas quanta barbárie entre nós humanos pode acontecer já aí, no processo de garantir a continuidade do viver. Para procriar, compartimos entre sexos. Mas a vida para florescer exige também cuidado e compartilhamento na família, na comunidade, na sociedade. Mas não é demais lembrar aqui que a humanidade inventou o patriarcalismo, o domínio dos homens sobre as mulheres, e tudo o que isto representa no modo de gestão do cuidado com a vida no seio das famílias. Nasce aí, com o patriarcalismo, a dissociação entre cuidado e compartilhamento do trabalho do cuidado.
Sem delongas, dado o curto espaço de uma crônica, o cuidar da vida exige ao mesmo tempo o compartilhar tanto o que ela nos dá como o que ela supõe para existir. Exige, portanto, o compartilhar tanto o trabalho do cuidado como os frutos do trabalho, com toda radicalidade que isto implica. A economia do cuidado traz em si mesma a necessidade do compartilhamento. Isto serve para o que se faz e produz, em termos de bens e serviços, como tudo mais: a vida em família, a comunidade mais próxima, a vivência social, a cultura, o saber, o poder, a sociedade com seus comuns, enfim. Somos seres de compartilhamento, entre nós mesmos, de nós com todos os seres vivos que nos dão alimento (inclusive os que nos ameaçam). Compartimos línguas que nos unem e a atmosfera que nos fornece a energia do oxigênio. Compartimos a água bem comum de toda vida, suas chuvas e secas, seus rios e mares. Compartimos o Planeta Terra. Creio que isto dá a dimensão da questão do compartilhamento como princípio complementar do cuidado e da sustentabilidade da vida e do próprio Planeta.
No mesmo sentido vai a convivência, integrada ao cuidado e ao compartilhamento. A convivência, ou o conviver, enquanto valor e princípio ético, por um lado, e como prática efetiva, por outro, é condição das relações sociais, processos e estruturas das sociedades. A convivência precisa ainda ser reconhecida e valorizada como fundamento para o grande tecido de interdependências em que assenta a biosfera e os sistemas ecológicos que definem a integridade da dinâmica natural do Planeta. Mas interessa aqui tomar a convivência como princípio integrante de um novo paradigma econômico, social, cultural e político, de uma nova narrativa para transformar o que nos é imposto hoje como sistema e modelo de desenvolvimento, como modo de nos organizar e viver.
A convivência é condição para dar conta da diversidade intrínseca à teia de interdependências do viver na troca com a natureza e no modo de operar das sociedades. Acontece que inventamos formas forçadas e negadoras da diversidade. O hoje dominante agronegócio destruiu a convivência com a biodiversidade que está na origem da agricultura e da fantástica diversidade da cultura alimentar no mundo. O agronegócio concentra grandes áreas de terra, desmata e impõe plantios e criações homogêneas, “matando” duplamente a biodiversidade: tanto a extraordinária biodiversidade das florestas e seu papel na regulação do ciclo da água e do clima, como a biodiversidade de plantas cultivadas e animais criados. Tudo com muito agrotóxico, para tentar proteger o “negócio” da biodiversidade teimosa em viver apesar das agressões. O agronegócio homogeneizador produz desertos verdes de pasto, eucalipto, cana, soja, milho… Ameaça os comuns, tanto a água, como os territórios de povos tradicionais, sejam indígenas ou ribeirinhos, posseiros, grupos extrativistas de frutos da floresta, quilombolas. Na esteira do agronegócio temos a “macdonalização” do alimento. Este é um exemplo como a indispensável convivência natural é negada socialmente. Muitos outros exemplos podem ser lembrados aqui, sempre mostrando a insustentabilidade de continuar neste caminho.
Sendo a diversidade condição do viver, como justificar o racismo e a segregação, a intolerância e o ódio, a exploração de uns pelos outros, a dominação de classes ou a conquista e dominação de povos inteiros ao redor do Planeta? Tudo isto representa negação da convivência e modos destrutivos do próprio sentido de fazer parte da humanidade e da biosfera. Conviver é reconhecer igualdade na diversidade e diferença. Ou, de outro modo, conviver é viver na diversidade e diferença com sentido de igualdade. Temos diferenças entre mulheres e homens, entre crianças, jovens, adultos e idosos, entre sãos e doentes, diferenças étnicas e raciais, religiosas, linguísticas e culturais. Tudo isto é vida! Tudo isto supõe cuidado, compartilhamento e convivência.
Termino reafirmando o sentido da narrativa que precisamos construir e disputar no espaço público, do local ao nacional, regional e mundial. A resiliência da vida e do Planeta Terra depende da reintrodução no centro dos sistemas do viver, na relação com a biosfera, na economia e no poder, na vida social e na cultura, em tudo enfim, dos princípios do cuidado, compartilhamento e da convivência, todos juntos e solidários.
Rio, 02/04/18

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