Foto de Maria Objetiva – https://www.flickr.com/photos/mariaobjetiva

Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

Está difícil suportar o que a conjuntura nos impõe diariamente. Estamos vivendo um momento de desmonte puro e simples do pouco que conquistamos em termos institucionais nos últimos 30 anos de democratização do Brasil. Rompeu-se o pacto político conciliador que marcou o processo pós-ditadura e que, mesmo sem mudar estruturas e processos, permitiu alguns avanços em termos de inclusão econômica e social. Agora, descaradamente, o mercado se apoderou do Estado e aprisionou objetivamente a política como bem comum democrático. As diferentes instituições públicas estão capturadas e a serviço de um capitalismo sem medo de ser selvagem, violento e destrutivo, social e politicamente excludente.
Como não se render e criar capacidades para enfrentar uma conjuntura assim? Resistir é preciso e em todo lugar pipocam manifestações de resistências cidadãs. Mas isto só não basta, tanto assim que estamos longe de criar movimentos irresistíveis, de grande poder cultural e político. Faz falta algo que ligue essas resistências e forme um substrato de forças sociais unidas por uma luta comum em termos cidadãos e democráticos. Tal liga tem necessariamente uma grande dimensão subjetiva de visões, esperanças e ideias que sejam um verdadeiro contraponto ao pensamento único que tomou conta da política, da mídia, do cotidiano em casa, no bar e no trabalho, do debate no seio da sociedade civil. Temos as novas redes, mas elas estão desarticuladas e expressam mais a fragmentação das resistências do que a busca de novos sentidos do viver em coletividade humana de cuidado da vida e do planeta, de convivência e compartilhamento, com direitos iguais movendo nossa condição de cidadania. Temos uma tarefa monumental de descolonizar mentes e de motivar vontades com sonhos e esperança de que as coisas podem ser radicalmente diferentes. E isto num quadro de hegemonia da mídia controlada por interesses privados, comprometida com o capitalismo globalizado que domina o mundo todo.
Sem dúvida, temos iniciativas cidadãs que pensam a política maior, particularmente levando em conta o que o calendário político nos joga no colo. No entanto, penso que tais iniciativas são respostas à agenda que está aí e nos deixam ainda presos na escolha entre o ruim e o menos pior, sem alternativas de transformação motivadora, com definição de estratégias possíveis na construção de caminhos de transição. Aqui me refiro aos quatro pilares incontornáveis que devem ser considerados para uma sociedade alternativa ao capitalismo hegemônico, uma sociedade democrática do bem viver para todas e todos: o respeito à integridade dos sistemas ecológicos e dos limites naturais; uma economia que não se mova pela acumulação privada de lucros, mas pela busca do bem estar coletivo, assentada nos bens comuns; uma sociedade vibrante em termos de vida social e cultural, de convivência e compartilhamento, valorizando a diversidade com respeito à igualdade, sem machismos, racismos e discriminações; um poder radicalmente democrático, tendo a cidadania ativa como força instituinte e constituinte.
Esta é uma tarefa de construção de hegemonia democrática e cidadã frente à hegemonia excludente e destrutiva do capitalismo globalizado. Aqui me refiro à hegemonia no sentido gramsciano, de direção intelectual, cultural, ética e política. Trata-se de construir imaginários para longo prazo, alimentando as resistências de hoje com visão estratégica das mudanças que precisam ser construídas desde aqui e agora, num processo de debate e disputa no seio da sociedade civil. Em última análise, trata-se de voltar a apostar em grandes movimentos que transformem as contradições e seus conflitos em forças cidadãs capazes de se contrapor e transformar as estruturas, as relações e os processos que permitem que este avassalador e fascista domínio das forças e interesses que apostam no livre mercado se apresente como única alternativa para nossas vidas.
Sei que a tarefa que aqui proponho aponta para olhar menos para as instâncias do Estado, para o Congresso tomado por interesses corporativos e privados mais do que a política como bem comum, para o Executivo do golpista governo Temer e seus ministros pouco louváveis, para o Judiciário politizado e dos salários escandalosos. Precisamos olhar prioritariamente para a sociedade civil em sua complexidade de espaços e condições de construção de hegemonia, como nos lembra Gramsci em sua contundente reflexão sobre as condições em que se gestou o fascismo na Itália entre guerras. Objetiva e subjetivamente, o golpe nas instituições e a imposição da agenda descarada do capitalismo globalizado para o Brasil de hoje se gestou no seio da sociedade civil, entre nós mesmos. Ou enfrentamos neste terreno a derrota política que sofremos ou mataremos a possibilidade de voltar a sonhar e ter esperança, pois as alternativas a tudo o que está aí precisam de urgente e estratégico pensar com ousadia que outro mundo é possível.
Novos paradigmas de viver como coletividade cidadã, de bem com o país que temos, precisam ser sonhados e queridos para um dia virar realidade. Fizemos isto para derrotar a ditadura lá atrás, apesar de ainda não termos conseguido transformar substancialmente a escandalosa sociedade excludente que temos. Precisamos voltar a acreditar em nossa capacidade, sem esperar salvadores da pátria. Tarefa para hoje, amanhã e depois, muito além, mas muito mesmo, do que a conjuntura nos impõe.
Rio, 11/09/17

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