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2018: Um possível e necessário recomeçar

Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

O começo de ano é sempre carregado de muito simbolismo e motivação. O ano que já passou não pode mais ser mudado, mas pode ser reavaliado e reinterpretado, despertando a vontade para um novo amanhã. Afinal, o que vem aí não está automaticamente determinado, mesmo que o contexto pareça sinalizar que o desejado não está à porta. Agir sempre pode mudar o que está por chegar. A ação humana coletiva é resultado de combinações múltiplas e de muitas possibilidades entre as circunstâncias históricas dadas e a vontade de intervir nelas e de mudá-las. Sem dúvida, de um ponto de vista de democracia radical e de busca da sustentabilidade socioambiental, herdamos de 2017 um contexto de gigantescos retrocessos no Brasil e no mundo inteiro. No entanto, como se diz no meu rincão lá do Rio Grande, “não está morto quem peleia”. Lutar acreditando que outro amanhã pode se tornar possível, mesmo se neste início de 2018 isso possa parecer inalcançável, é uma questão de cidadania, de vontade política, de resistir e imaginar sempre.
Com as lentes e valores de cidadania ativa, podemos ver que o processo eleitoral está entre as maiores possibilidades de olhar para novos horizontes de mudança em 2018. Destaco os desafios do processo em si, como conjuntura propícia para voltarmos a debater publicamente agendas e estratégias de outro Brasil. Temos que estancar o desmanche de direitos e da democracia, imposto pelas forças golpistas conservadoras que assaltaram o poder político estatal. Mas só isto não basta para voltarmos a sonhar com todos e iguais direitos para toda a cidadania do Brasil, sem nenhuma discriminação. A ruptura com o pacto conciliador embutido na Constituição de 1988 nos obriga a pensar num processo de longo prazo, capaz de gestar uma Nova Constituinte que permita a democracia voltar a florescer e a política a ser tratada como um bem comum público fundamental, livre da privatização e negociações espúrias, que corroem partidos e representações políticas na atualidade. Para tanto, a democracia precisa ser sonhada e praticada pela cidadania, no seio da sociedade civil, no debate público, nas redes sociais e na mídia, nas organizações e movimentos de rua, nos bares, praças e praias. Este é o espaço da cidadania por excelência, da liberdade de pensar e agir, da construção e disputa de hegemonia no sentido de projeto e direção a seguir.
Precisamos superar o atual descrédito na política em potencial transformador da democracia como modo de ação renovadora para uma sociedade justa, participativa e sustentável. Um horizonte estratégico assim não está dado pela eleição em si, mas precisa ser implantado no aqui e agora, para desabrochar amanhã. Poderemos lutar por anos, décadas até, mas nada como a perseverança no dia a dia, único real caminho de construção de outro horizonte. Claro que os resultados eleitorais podem contribuir, estancando a sangria atual. Alguns pontos essenciais precisam ser postos na mesa para encurralar as forças antidemocráticas que saíram do armário com o golpe e para comprometer os eleitos com uma agenda de futuro diferente do que se apresenta hoje. Sobretudo, porém, precisamos nos fortalecer como cidadania ativa. “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, é o que precisamos voltar a cantar em todo lugar.
Como contribuição ao debate necessário de agenda e estratégia de futuro, proponho aqui alguns pontos iniciais e inadiáveis, mas longe de esgotar tudo o que nos desafia pela frente no possível radioso amanhã:

  1. Lutar por um referendo revogatório das mudanças constitucionais e legais perpetradas pelo golpe e o Governo Temer

Esta proposta já está circulando por aí, especialmente entre as forças que se opõem ao ilegítimo governo que temos. As mudanças produzidas não foram submetidas ao voto popular para ter respaldo democrático. Elas foram impostas como “agenda de reformas” por forças ocultas por trás do golpe do impeachment. Precisamos transformar o processo eleitoral em momento de questionamento profundo das medidas constitucionais, legais e políticas adotadas pelo governo como algo essencialmente antidemocrático. Vai ser fundamental dar um caráter plebiscitário ao pleito para que se forme uma maioria representativa e governamental capaz de tornar inevitável a convocação de um referendo revogatório da tal agenda de reformas convertida em mudanças na constituição e nas leis.

  1. Pautar, de forma enfática, o incontornável e inadiável que é para a democracia entre nós, a criação de um patamar histórico mínimo de dignidade de vida cidadã com direitos iguais para todas e todos, sem distinção, acima de qualquer outra agenda de reformas

O enfrentamento prioritário das abissais desigualdades e exclusões sociais, do machismo e do racismo profundamente entranhados nas relações e estrutura social do Brasil, uma linha de base democrática mínima, não pode ficar dependente de uma agenda que prioriza o crescimento econômico como condição primeira. A distribuição de riquezas do país precisa se tornar a regra de medida do orçamento e das políticas públicas, antes e acima da ditadura do mercado e de especuladores. O compromisso com a universalização de políticas que garantam direitos – saúde, educação, saneamento, moradia, mobilidade, cultura, previdência social, trabalho e renda, entre tantos outros – deve pautar o regime tributário e alocação de recursos públicos nos orçamentos e nas políticas dos governos.

  1. A preservação da integridade do patrimônio natural como um bem comum deve se tornar uma condição indispensável para que possamos imaginar outro Brasil

Não podemos ser condescendentes com uma visão dominante de tipo colonial e conquistadora na relação com os territórios, em sua diversidade e riqueza, que compõem o patrimônio natural que nos cabe cuidar para a humanidade inteira, para uma civilização planetária. Preservar a integridade dos sistemas ecológicos é também uma questão de justiça e de igualdade entre nós hoje e com as gerações futuras. Não faremos outro Brasil democrático e sustentável em termos socioambientais com uma mentalidade depredadora de recursos naturais em nome de um desenvolvimento econômico a todo custo e imediato, marcado por exclusões, desigualdades, pobreza, racismo e patriarcalismo. O que é na sua origem destruidor e desigual não pode gerar nada de bom no após. Os diferentes extrativismos – energéticos, minerais e do agronegócio –  praticados entre nós aprofundam nossa inserção dependente no mundo globalizado e dominado pelas grandes corporações econômicas e financeiras, contribuem para a mudança climática e destroem o patrimônio natural do Brasil.

  1. Voltar a pautar as nossas cidades como territórios bens comuns de toda a cidadania que aí vive

É inaceitável que a segmentação social e o racismo espacial – centro x periferia, asfalto x favela, áreas ricas x áreas de pobreza extrema – continuem sendo a lógica dominante na organização das cidades. Todo o sistema de poder, a economia, a infraestrutura, os serviços, a mobilidade, a política de moradia, etc. devem se orientar por uma visão de cidade como território de cidadania e não de negócios acima de tudo. A diversidade de formas de organizar as cidades como territórios de cidadania não deve ser pretexto de desigualdades e exclusões.

  1. Precisamos extirpar do nosso seio a violência, a militarização, a intolerância com os e as diferentes e o ódio com quem não pensa como a gente, dando lugar a princípios e valores de cuidado coletivo, convivência solidária e compartilhamento de tudo

As fissuras e fraturas sociais estão expostas de forma dramática na atualidade. Perdemos a capacidade de nos encantar com nós mesmos, nosso modo de ser, brincar e encarar a vida. Não podemos seguir tal caminho de violência e morte. A diversidade pode e deve virar nossa fortaleza coletiva.  Para isto, precisamos cultivar a tolerância e a paz, a solidariedade de uns e umas com outros e outras, o cuidado com quem precisa, sejam as novas gerações como aquelas que passam, precisamos reaprender a compartilhar valores, imaginários, cultura, bens comuns.

  1. Estamos diante do desafio de voltar a disputar hegemonia dos princípios éticos e valores democráticos como norma de vida coletiva e base de construção de outro Brasil

Trata-se de criar condições para que floresçam imaginários para além do produtivismo e consumismo individualista que hoje colonizam nossos corações, desejos e modos de pensar dominantes no paradigma civilizatório do capitalismo em crise. O ter mais e mais bens como ideal de vida nos dá uma subjetividade de colonizados pela civilização do capitalismo imperialista e predador. A emancipação se dará pela insurgência ética diante de um sistema que nega cosmovisões diferentes, ética esta portadora de uma visão radicalmente mais planetária e sustentável. Nosso horizonte deve ser capaz de integrar uma visão ecossocial cosmopolita, de um mundo para todos os povos, de uma humanidade de bem consigo mesma e seu grande Planeta Terra. Este é um desafio de ordem filosófica, conceitual, científica e técnica em novas bases epistemológicas e éticas. Porém, não é uma questão de especialistas e sim de cultura e comunicação no sentido radical, de sentir e se mobilizar coletivamente. Neste campo, temos que reaprender a nos comunicar e nos educar mutuamente como cidadania que vive uma relação necessariamente compartilhada entre todas e todos com base numa visão de mesmos direitos, exatamente por sermos simplesmente humanos num Planeta Terra comum a toda humanidade.
Estou convencido que esta é apenas uma agenda necessária, por mais impossível e sem sentido estratégico que ela possa parecer para o ano de 2018 aqui no Brasil. A única coisa certa é que o sonho nunca pode ter um limite para começar a ser sonhado e motivar a ação desde aqui e agora.
Rio de Janeiro, 03/01/2018

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