Manifestantes em São Paulo contra a aprovação da PEC 241, que congelou o teto dos gastos públicos por 20 anos – Foto: Mídia Ninja

Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

De uma perspectiva de organização de cidadania ativa como o Ibase, avaliar o ano que chega ao fim, de olho no que vem aí, é se debruçar sobre o período mais difícil para a democracia no Brasil. O Ibase, criado em 1981, é fruto da redemocratização puxada por forte onda de cidadania ativa. Desde os mais diferentes poros da sociedade, emergia então um sonho e uma vontade coletiva de acabar com a ditadura militar e instaurar um virtuoso processo democrático no país. A Constituição de 1988 sela o pacto de transição possível para a época, com notáveis avanços em termos de direitos de cidadania política e de direitos econômicos, sociais e culturais. Porém, nada ou quase nada de mudanças a comemorar na profundamente injusta e desigual estrutura econômica e social do capitalismo a la brasileira, herdeiro de séculos de colonialismo, escravidão e racismo, patriarcalismo e patrimonialismo da heterogênea mas poderosa classe de proprietários de tudo, que até hoje confundem direitos com seus privilégios. Mas, enfim, a Constituição foi um avanço. Democracia é, por definição, um pacto de incertezas. Em nome da governabilidade celebrou-se um pacto de conciliação de interesses extremamente contraditórios, que nos permitiu sair da ditadura, mas não nos deixava prever, no então, que seria ele o “calcanhar de Aquiles” da nascente democracia.
Passados 30 anos, o pacto conciliatório de então foi rompido unilateralmente pelos donos de tudo e estamos amargando o monumental retrocesso democrático de agora, beirando a fascismo, como nos lembra Boaventura Souza Santos. Como sair desta enrascada de um governo corrupto, que conta com o apoio no Congresso Nacional onde manda uma quadrilha de representantes que se vendem pela melhor oferta? Será possível voltar a sonhar com radicalização democrática para construir uma sociedade mais justa e sustentável de um ponto de vista socioambiental? Decididamente, a possibilidade existe, sim! Mas saídas autoritárias são, no momento, mais ameaçadoras. Por isto vai custar muito construir o caminho virtuoso da democracia, provavelmente décadas, pois estamos diante de uma necessidade de recomeçar, com renovada esperança, ousadia e determinação. Precisamos começar pela revisão de nossos próprios erros e, sobretudo, pelo reconhecimento dos novos desafios. Eles estão muito além da imediata conjuntura eleitoral de 2018, algo que precisamos enfrentar para que o retrocesso não seja ainda maior.  Iniciar uma transformação profunda vai exigir tempo, paciência e muito ativismo. Acima de tudo, precisamos voltar a ter condições de disputa de hegemonia na sociedade brasileira com ideias e propostas de democracia transformadora. Esta é uma tarefa intransferível para a cidadania ativa, pois só ela tem o poder instituinte e constituinte. Cabe à cidadania como bloco histórico o direito e a responsabilidade coletiva para revogar tudo o que caracteriza retrocesso e criar as condições para a refundação da própria democracia.
Aqui se destaca o grande contexto nacional. No entanto, ele é parte de um contexto global de grandes ameaças e muitos retrocessos em direitos e democracia. As grandes corporações econômicas e financeiras gozam de uma hegemonia inconteste no momento, impondo o neoliberalismo e as forças do mercado como única alternativa para o mundo. Os fascismos e autoritarismos estão de volta. Por outro lado, o contexto mais imediato do Ibase, o Rio de Janeiro, é a versão brasileira mais trágica de um modo de governar destruidor de conquistas de direitos, de proteção social e ambiental e de atropelamento político e institucional da democracia. O certo é que estes elementos todos precisam ser levados em conta. As resistências e incidências de capacidade estratégica no curto prazo são a situação nacional do Brasil.
O Ibase identifica os desafios que a cidadania ativa tem pela frente como déficits democráticos, alguns antigos e outros novos, que cresceram enormemente neste ano de 2017, quando o Governo Temer submeteu o Brasil a um radical ajuste neoliberal em benefício das forças do livre mercado. Destacamos aqui os déficits mais destrutivos da democracia como valor político agregador, como imaginário mobilizador e como projeto estratégico:

  • Déficit de ética na política – A política como bem comum democrático só é possível se os princípios e valores éticos da liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação forem aceitos como regras básicas de convivência numa sociedade dada. Transformar as contradições geradas pelas relações e processos e as disputas daí resultantes em forças construtivas do bem comum é o sentido profundo da institucionalidade e da política democrática. A política enquanto tal deve ser preservada como um espaço público e bem comum para tanto. Neste sentido, a mercantilização da política, a inorganicidade dos partidos, a formação de blocos corporativos que defendem interesses privados, a total falta de ética nas relações políticas no Legislativo e no Executivo são um câncer político mortal da democracia. A política voltou a ser negociata e prática da esperteza, sem limites. Estamos voltando ao império da lei selvagem do mais forte, com primazia do interesse pessoal e de vantagens sobre o bem comum coletivo.
  • Déficit de direitos – O que qualifica a democracia é o “estado dos direitos de cidadania”, onde todos os direitos – civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, os direitos aos bens comuns – são reconhecidos como de todos e todas, sem discriminações ou privilégios. A luta por direitos configura as situações históricas da democracia. O agressivo ataque a direitos estabelecidos na Constituição e o processo de desmonte das políticas que os garantem são, num certo modo, o centro da política do Governo Temer. A justificativa é o ajuste fiscal para agradar o “mercado” e pagar os encargos da dívida pública. Na prática, porém, gera-se um déficit democrático que compromete a cidadania e a democracia da maior parte da população atual e de futuras gerações. As consequências já são visíveis no cotidiano e as próprias estatísticas oficiais confirmam. A falta de empregos é contabilizada em milhões e a precariedade do trabalho informal voltou a explodir. A saúde e educação são precárias. A violência em toda parte, em particular contra populações de favelas e periferias, indígenas, quilombolas, sem terra e posseiros, e os assassinatos cresceram de forma assustadora.  O apoio quase incondicional dos donos e de amplos setores de classes médias favorece este clima de volta aos massacres e assassinatos em nome de um suposto respeito a direitos adquiridos. Nesta questão dos direitos, importa aqui destacar o ativo papel da grande mídia, que legitima o discurso da necessidade do ajuste e do tal “fardo” que representa garantir direitos para todos, ignorando totalmente os banqueiros e especuladores, as isenções fiscais para grandes empresas, a lavagem de dinheiro desviado para paraísos fiscais.
  • Déficit de convívio na diversidade – As manifestações de intolerância e ódio com pobres, nordestinos, negros, indígenas, grupos LGBT, com prática de violência até, fazem parte de nosso cotidiano. A própria afirmação de relações de gênero como causa estrutural de desigualdades sociais e até de violências entre nós virou alvo de ataques e se quer banida do recinto escolar, em nome de uma “escola sem partido”. A liberdade de expressão política e cultural está sendo criminalizada. A conjuntura criada com os retrocessos na democracia alimenta um clima propício à barbárie no lugar do convívio, compartilhamento e cuidado com quem precisa. Aqui cabe destacar ainda que até o discurso autoritário e favorável a soluções ditatoriais “saiu do armário” e é pregado abertamente por alguns políticos e até por certos candidatos às próximas eleições. O apoio à militarização em certas operações de repressão vai neste sentido. Enfim, o tecido social que vinha ganhando em sentido e densidade, abrindo espaço para manifestações da legítima e fundamental diversidade social e cultural que nos constitui como povo, está sendo violentamente esgarçado.
  • Déficit na nossa relação com a natureza – Por razões históricas que não cabe aprofundar aqui, temos um imenso e diverso território, com riquíssima e até única biodiversidade, que nos cabe cuidar. Aqui a questão é como usar o que a natureza nos dá como um dom para viver, sem destruir. Temos ou não a responsabilidade coletiva pela integridade dos sistemas ecológicos constitutivos do território que ocupamos como um bem comum nosso, sem dúvida, mas compartido com a humanidade inteira? Ou podemos a voltar a explorar e extrair compulsivamente, comprometendo o modo de vida de futuras gerações e a própria integridade do Planeta? Houve, sem dúvida, alguns avanços em termos de cuidado com a natureza nos 30 anos de democratização, mas ainda estamos longe de poder dizer que estamos bem, principalmente diante do tamanho do desafio. Ainda temos uma poderosa mentalidade colonialista de conquista, que torna o Cerrado, o Pantanal e a Amazônia os grandes territórios ameaçados de hoje, como foi a Mata Atlântica até outro dia. Agora, através de uma canetada de Temer, vem abaixo todo o arcabouço institucional e legal em termos socioambientais que havíamos construído. Agronegócios e mineradoras estão “emancipadas” para fazer o seu negócio extrativista. A isto se soma uma visão política de o “interesse privado” sabe melhor tirar partido na exploração da água, dos minérios e da biodiversidade que temos. A contribuição do Brasil para as emissões fósseis causadoras da mudança climática, com a exploração privada das imensas jazidas do petróleo do pré-sal por ávidas empresas petrolíferas de lucro imediato, é uma dívida socioambiental crescente que acabamos de contrair.
  • Déficit de Justiça – Uma democracia substantiva depende de um Poder Judiciário efetivo e o mais imparcial possível. Aqui estamos diante de um grande déficit democrático, que já na Constituição de 1988 não estava resolvido da forma mais avançada possível. O resultado se sente agora. Temos uma Justiça conivente com o desmonte que está sento praticando na essência da frágil democracia conquistada. De um lado, temos prisões abarrotadas de pobres, jovens e negros a espera de Justiça e, de outro, um montão de criminosos de colarinho-branco soltos e continuando na prática de grandes crimes. As espetaculares prisões coercitivas e condenações baseadas em delações premiadas em nome do combate à corrupção não dão legitimidade ao Poder Judiciário diante de um quadro constitucional que está sendo desconstruído. O Judiciário está sendo seletivo e conivente com o quadro de injustiças, agressão ambiental e desmonte democrático. Além disto, é no Judiciário que se situam os maiores privilégios, vistos por ele mesmo como direitos adquiridos. Tem agressão jurídica maior do que esta contra o espírito da igualdade de direitos de uma democracia?
  • Déficit de democracia – Para o Ibase, donde a gente olha tudo isto e tenta agir, respeitando o próprio mandato institucional registrado em seu Estatuto como organização autônoma a serviço da democracia radical, os diferentes déficits apontados aqui (entre muitos, mas que o espaço aqui não permite tratar), tudo pode ser resumido em falta de democracia substantiva. Queremos destacar com isto a perda de hegemonia do próprio ideal democrático no seio do povo. Há um descrédito generalizado na política e nos políticos. Faltam sonho e esperança de que algo melhor seja possível, sobretudo que a democracia seja capaz de propiciar isto. A gravidade de tal ameaça presente no imaginário popular não pode ser ignorada por organizações de cidadania ativa como o Ibase. Estamos diante da necessidade de disputar corações e mentes com poderosos imaginários mobilizadores. Afinal, a consciência de “ter o direito a ter direitos” é a definição mais radical do sentir e agir como cidadania num momento histórico dado. Para isto, se faz necessário uma grande iniciativa no seio da sociedade civil, organizando redes e alimentado um processo político e cultural capaz de levar à disputa de ideias, conceitos, análises, visões, sentimentos, modos de agir e se organizar, conviver com a diferença como um valor, cuidar junto e compartilhar entre todas e todos. Trata-se de voltar a disputar o ideal democrático como alternativa e processo de transição transformadora para uma sociedade justa e sustentável em termos socioambientais.

Dar-se como tarefa institucional o enfrentamento de todos estes déficits parece demais para uma entidade que não passa de uma pulga, como sempre tenho afirmado quando perguntado sobre o poder do Ibase. O que sempre acrescento é que mudar, de fato, não conseguimos, mas para incomodar poderosas estruturas de poder temos o saber fazer necessário. Quando nos organizamos em rede de parceiros no seio da sociedade civil, tipo colônia de pulgas, o incômodo produzido move até “elefantes” sociais. Para exercer mais efetivamente tal missão, o Ibase entrou em um processo de refundação em 2017 e está pronto para novos desafios em 2018. Sabemos que mudanças mesmo só vão acontecer com grandes movimentos de cidadania, de muitas pulgas cidadãs organizadas em rede na disputa de direitos, convencidas de que uma democracia refundada também é um caminho possível e promissor para o Brasil que o mundo, e nós mesmos, necessitamos.
Rio, 18/12/2017

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