Cândido Grzybowski

Sociólogo, do Ibase

Parece prosaico e nada político, o falar em comida. Enquanto preparava comida junto com minha companheira, fiquei matutando no que isto significa, sobretudo nos tempos difíceis que estamos vivendo. Certas velhas questões voltaram a me intrigar. Pensei na questão da fome, a negação por excelência da comida, que voltou com força na conjuntura de crise. Dá um nó no âmago do estômago ver tanta gente catando restos de comida… em lixeiras! Sou dos que imaginaram que tal cena não veríamos mais. Que nada, a violência da fome é patente em nossas cidades. Mais e mais mendigos estão entregues à própria sorte. A fome não é um problema político fundamental? Como podem nossos ricaços banqueiros e executivos de corporações dormirem tranquilos com seus bilhões enquanto tanto gente passa fome? E ainda temos que aguentar o corrupto Temer e seu gerentão Meireles dizer que estamos no bom caminho! Que sina!

Mas meu tema da crônica hoje não é a fome e sim o seu antídoto, a comida. Afinal, minha reflexão começou no processo de defumar uma costelinha de porco, uma das carnes mais baratas do mercado de hoje. Está rara a costelinha defumada, um produto muito presente naquela culinária aculturada entre gaúchos e colonos europeus do Rio Grande do Sul. Eu nasci numa família de camponeses de origem polonesa, em Erechim, onde a carne de porco era a proteína animal fundamental para a família e a banha o principal produto de venda para aqueles famintos imigrantes italianos do café, em São Paulo. A matança de porcos gordos era uma festa, pois tudo se fazia em mutirão, com vizinhos e parentes juntos. Eram processados seis ou mais porcos num dia de trabalho. Na época, eu uma criança, lembro das bexigas de porco que as tias e vizinhas enchiam como se fossem bolas para as crianças brincarem. Claro, lembro também da grande comilança de carne de porco assada no espeto que se comia na ocasião, parte fundamental do próprio mutirão. A festa da comida camponesa-polonesa continuava por dias no recinto familiar, pois havia as linguiças frescas fritas, o patê e, sobretudo, a kiszka da pele e miúdos do porco fritos para o café da manhã.

Lembrando tudo isto, por vício e dever de ofício, fiquei associando ideias e vendo como as resistências alimentares podem ser fundamentais no viver em adversidades. Sem dúvida, hoje, no Brasil, estamos diante de uma situação econômica que exige rever modos de vida e práticas. Com a crise, somos muitos os que deixamos de frequentar restaurantes, fazendo contas. Só para aniversários e celebrações vamos a restaurantes, mesmo assim com muitas dúvidas dado o salário que atrasou ou, no caso de funcionários públicos, simplesmente não vem. De longe, é mais barato comer e celebrar em casa. Aí, volta algo que nunca deveríamos ter deixado para trás, as receitas familiares de comida. Este é o ponto! Penso que a crise do golpe e a crise econômica, combinadas, nos levaram a redescobrir a boa comida anti-macdonaldização, por assim dizer. Enfim, uma trincheira estomacal contra tudo o que está aí: a imposição de um padrão alimentar restrito e “engordativo”, o agronegócio e Temer, tudo junto!

Posso estar brincando com coisa séria, mas minha mensagem nesta crônica é de estímulo à valorização da boa e saudável comida caseira, ainda mais orgânica, como forma de resistência alimentar e – por que não? – política. Afinal, esquecendo aqueles donos de finanças e bancos, o principal apoio ao governo golpista do Temer é o agronegócio. Eles são um dos pilares das exportações e de superávits comerciais. A custa de que? Até da nossa própria soberania e segurança alimentar!

Mas voltemos ao tema de minha crônica. Devo reconhecer que é bom se dar conta que num gesto de fazer comida está uma grande resistência não só ao governo, mas ao modelo que nos tentam impor. Voltar a fazer comida em casa é uma necessidade para milhões de famílias. Aliás, sempre foi, basta lembrar da expressão “bóia-fria”, uma identidade social entre nós. Quem sabe podemos ir mais fundo e transformar o gesto de fazer comida em casa em uma verdadeira trincheira.

Pensando nisto, como dever de ofício fui levado a lembrar dos Carbonários durante a II Guerra Mundial, na Itália. Eles foram a força de resistência fundamental ao ditador Mussolini. Pois bem, as urgências do front não permitiam comer como se deve. Mas como não comer massa sendo italianos? No front da resistência inventou-se a “massa à carbonara”, aquela do ovo cru em massa quente, uma delícia!

Acho que se pesquisarmos encontraremos muitos pratos fundamentais vindos da resistência. Todos os povos tem pratos de comida assim. Meu avô, nascido na Polônia, chegou ao Brasil com 10 anos em 1890. Passou pela Ilha das Flores, hoje museu da imigração, onde perdeu um irmão devido à febre amarela. Pois bem, entre as muitas histórias que meu avô me contou quando criança tem aquela do chucrute, prato comum de povos da Europa Central e do Leste. O chucrute era um alimento básico para inverno nas camadas camponesas mais pobres. Tratava-se de conservar o repolho durante o inverno, pois outro legume não se teria por, pelo menos, seis meses de frio intenso. Hoje se sabe que a forma de conservar o repolho como chucrute acaba empoderando o repolho como alimento. Mas independente disto, que maravilha que é saborear este prato de resistência de pobres.

Aliás, ao falar em chucrute lembro logo de nossa feijoada, o grande prato de resistência da escravidão virado praticamente um símbolo da boa comida nacional. Mas será que agronegócio tem a ver com boa feijoada? Agronegócio tem muito a ver com o Governo Temer, inclusive com denúncias de corrupção. Agora, a gente encontra carne de porco em quantidade, mas já virou coisa de butique encontrar os produtos para uma boa feijoada. Enfim, se associarmos comida, feijoada e política, o samba anti-golpistas talvez, seja mais eficaz.

Rio, 03/07/17

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