Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

Chegou 2017 no embalo do golpe das forças conservadoras e autoritárias contra a democracia e o futuro do Brasil. Nada de substantivo mudou na conjuntura. Quero, porém, ser claro a respeito disto, pois não desprezo a genial invenção cultural e a convenção humana do calendário e do horário para se situar no ritmo da vida natural e fazer história em interação com ele. Sempre digo, nada como um dia após outro. Isto vale para todas e todos. É condição fundamental da política. Até golpistas e fascistas sabem que não são eternos, todos passamos, outras e outros virão.
O fato de não constatar mudanças orgânicas na conjuntura política me leva a olhar mais longe e pensar no Outro Brasil. O Brasil dos sonhos, do bem viver. Brasil de bem com o seu próprio povo e com os diferentes povos do mundo. Brasil participativo e democrático, território da igualdade cidadã na fantástica diversidade do que somos. Brasil sustentável, que valoriza a imensa e rica base natural como bem comum a ser cuidado e não dilapidado. Sonhos e utopias são uma condição essencial para definir imaginários mobilizadores. Alimentam energia construtiva, dão sentido ao viver em coletividade, com identidade e cultura de um povo que se orgulha de si mesmo.
Sonhos despertam a vontade, mas a ação concreta depende de condições objetivas, dadas, que nos fogem. Ou seja, como diz o mestre Gramsci, a ação transformadora na história depende de um bloco histórico que combina vontade (sonhos, valores e projetos) com condições históricas que encontramos na sociedade (estruturas e processos naturais, econômicos, sociais, políticos, culturais e históricos). Ou seja, precisamos de análises consistentes e de apostas estratégicas de longo prazo, mas ancoradas no aqui e agora. Precisamos escolher, algo fundamental para a ação, sem desconhecer as condições necessárias que precisam surgir ou ser construídas de algum modo. Neste sentido, a mudança depende de nós e dos erros dos que combatemos politicamente. Tudo é possível, desde que…
Dito isto, penso que temos, sim, uma tarefa inadiável de resistências sem trégua ao assalto do poder pelos golpistas, com toda a sua agenda de desconstrução de direitos e da institucionalidade democrática e de total subserviência aos interesses privados de corporações capitalistas, agronegócio, bancos e rentistas de toda espécie, contando com a aprovação de um Congresso capacho e com o apoio da grande mídia monopolista que temos. Temos obrigação cidadã de tornar a sua tarefa a mais difícil e até impossível. Isto certamente evita o pior e, sobretudo, abre possibilidades.
Mas possibilidades de Outro Brasil não surgirão automaticamente das resistências. Não podemos nunca esquecer que as resistências são apenas uma resposta cidadã e democrática a uma agenda de restauração conservadora e antidemocrática. Resistências são uma necessidade de luta na conjuntura adversa, mas não a nossa agenda estratégica para o amanhã. Qual é o projeto de Brasil que queremos fazer florescer no lugar desse que emerge da agenda conservadora e autoritária? Como criar as condições para isto?
É evidente que estamos diante de uma tarefa coletiva de grande envergadura, que exige ousadia e determinação. As resistências que se multiplicam pelo Brasil, nos diferentes territórios, tendo como protagonistas diferentes sujeitos coletivos, podem se transformar em espaço de análise, reflexão e construção coletiva desde a base de projetos e estratégias, movimentos e organizações. Nas nossas diferentes trincheiras, precisamos pensar estrategicamente imaginários mobilizadores, que nos motivem para a disputa de hegemonia na sociedade e que sejam capazes de criar uma nova, grande e irresistível onda de redemocratização do poder e da economia.
Estou refletindo e escrevendo isto tudo com um ponto de vista muito específico, onde me situo como ativista cidadão. Vejo com os olhos do campo das organizações de cidadania ativa, integrantes da ABONG, e em particular do Ibase. Com uma trajetória de 35 anos, o Ibase se engajou na formulação de propostas de democracia radical e de políticas públicas baseadas em todos os direitos humanos para todos e na ação cidadã como método para o enfrentamento das exclusões e desigualdades sociais, da violência e das segregações, do machismo e do racismo, do poder a serviço de uma economia selvagem e destrutiva da base natural e privatizante dos bens comuns. É parte da cultura institucional do Ibase agir em articulações e parcerias, redes e fóruns, priorizando a intervenção no espaço, e debate público democrático. O legado que o Ibase carrega ajuda a ver alguns dos prementes desafios pela frente e a dar a sua pequena contribuição para a agenda coletiva. No entanto, não a esgota.
Arrolo aqui estes pontos que me parecem mais estratégicos:
Resgatar, aprofundar e disputar a democracia como projeto mobilizador e valor estratégico na definição das transformações no poder e na economia para um Brasil de direitos de cidadania e justiça socioambiental para todas e todos, com igualdade na diferença.
Lutar pela incondicional liberdade de expressão e ação cidadã como condição de participação e inclusão de todas as vozes e coletivos no processo de reconstrução democrática.
Para incidir no espaço e debate público, disputando hegemonia, usar as possibilidades das tecnologias de informação e comunicação e articular as iniciativas, mantendo sua autonomia e seu público, mas formando um pool de cobertura nacional capaz de virar referência de um novo pensamento democrático diante da mídia monopolista.
Multiplicar os debates de conjuntura nas diferentes trincheiras de resistência, como espaços de liberdade de pensar e de troca de saberes – nos diferentes territórios de cidadania, nas escolas, universidades, centros de cultura e igrejas, nos locais de trabalho, associações, movimentos e sindicatos -, contando com subsídios e informações difundidas pelo esforço coletivo de comunicação.
O espaço da política é um bem comum fundamental para a democracia e a cidadania ativa. Libertar a política das amarras estabelecidas pelas forças e interesses privados e torná-la locus de representação da igualdade cidadã na diversidade social e cultural que nos faz como povo é essencial para a disputa democrática dos rumos e projetos para o país, da institucionalidade legal e jurídica como regulação, do poder legítimo para liderar, das políticas a implementar e dos recursos coletivos necessários. Uma Reforma Política que vise o fortalecimento do bem comum da política e a vitalidade da democracia é indispensável para o futuro.
O Judiciário no Brasil tem se revelado um poder não afinado com a democracia. A Reforma da Política, restabelecendo o seu caráter de bem comum democrático, precisa vir casada com uma profunda e democrática Reforma do Judiciário. Numa democracia plena, o protagonismo deve ser exercido sempre pela política, no espaço público da política. Não cabe ao Judiciário fazer política.
A agenda dos direitos de cidadania – direitos civis e políticos, direitos econômicos, sociais e culturais, direitos coletivos -, termômetro da qualidade da democracia, ainda longe de ter sido plenamente implementada, é uma das esferas políticas democráticas que mais está sendo agredida na atual conjuntura. A prioridade dos golpistas são os negócios e a acumulação privada, a preservação de privilégios adquiridos acima de direitos, os valores e visões fundamentalistas do mérito acima dos direitos iguais, do combate a políticas de gênero e igualdade racial, da redução da maioridade penal e da repressão policial violenta, da limitação do habeas corpus e da prisão preventiva, da Escola Sem Partido. Retomar de forma radical a agenda dos direitos de cidadania é olhar estrategicamente para Outro Brasil.
Uma questão difícil e controversa, mesmo entre nós que optamos pela democracia radical e pensamos Outro Brasil, são as propostas de economia para o país. Precisamos por na mesa tal questão, que simplifico aqui como uma discussão entre “modelo de desenvolvimento” ou de “alternativas econômicas ao desenvolvimento como modelo”. Uma economia para a democracia, a sustentabilidade e o bem viver é indispensável. Mas a prioridade é crescer – que tem como motor acumular privada ou estatalmente -, mesmo com condicionalidades sociais e ambientais reguladoras, para distribuir a riqueza gerada depois? Ou, olhando de uma perspectiva de sustentabilidade democrática e socioambiental, dos direitos e dos bens comuns, trata-se de inventar uma economia baseada ela mesma no cuidado com a natureza e com as pessoas, voltada para as necessidades humanas antes da acumulação, nos direitos, no trabalho e na distribuição compartida do que for gerado, como proposto pela economia solidária?
– Nesta proposta de alguns pontos básicos de agenda de futuro a partir de onde olho e atuo, destaco o trabalho de base que deixamos um tanto de lado com o avanço da onda democratização, que acaba de se esgotar. Precisamos voltar a pensar e agir a partir das bases. O próprio Ibase surgiu como instituto + base, traduzido no nome formal que tem hoje. Isto traz para a agenda “os locais”, os múltiplos e diversos territórios de cidadania em que levamos a nossa vida. Urbanos ou rurais, de favelas ou do asfalto, de quilombolas, indígenas, extrativistas ou pescadores, capitais ou interioranos, de praias, sertões ou florestas. Todos são territórios de cidadania com identidade sociocultural e especificidades em termos de problemas e possibilidades. Os territórios de cidadania são a vida. A democracia radical para ser substantiva ou finca raízes nos territórios e o que eles contém como universalismo cidadão em suas lutas ou nada de fundamental significa para a cidadania que aí vive, trabalha e luta por seus direitos. Mas ter o local, a base, os territórios como referência não pode nos levar ao erro do localismo. A perspectiva da cidadania é universalizante. Precisa ser nacional, regional e mundial. Afinal, hoje em dia, temos uma tarefa de criar movimentos de cidadania planetária, dado que a partir de lutas locais vemos que a globalização nos desafia a agir localmente com perspectiva mundial.
 
Rio de Janeiro, 04/01/17
 
 

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