Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

Nestes dias de sol forte e muito calor nos sentimos encurralados, tipo “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Olhamos para o céu em busca de sinais de chuva como alento e ela, teimosa como todos os sistemas ecológicos, é algo um tanto incerto. Pode vir e certamente virá alguma hora, algum dia, ainda mais em climas tropicais como o nosso. Mas pode ser tempestade destrutiva, com deslizamentos e inundações, tromba d’água curta apesar de relâmpagos e trovões, chuva paciente e persistente, ou aquele chuvisco que nem lava a poeira. O certo é que a chuva também é parte do verão e que, após ela, o calor retornará. Dia de sol, de chuva, de calor ou frio, tempo emburrado, dá praia ou não dá e tudo o mais do clima faz parte do cotidiano que se nos impõe no viver o dia a dia. Este talvez seja o elemento do meio ambiente mais percebido e consciente em nosso viver. Mas daí a entender a gravidade da questão de mudança climática e suas causas há um fosso enorme. Aliás, estamos longe de conviver de forma amigável e sustentável com o meio ambiente imediato.
A natureza, a integridade de seus sistemas ecológicos que formam um todo vivo, de que somos parte e dependentes, é um bem comum indispensável ao viver humano. O modo de nos relacionar entre nós mesmos e com a base natural é definidor das civilizações que construímos como humanidade ao longo da história. Trata-se de uma questão central para as filosofias e as religiões, para as economias e as formas de poder, para as sociedades e as culturas. Mas tudo isto parece distante do nosso cotidiano. Ainda mais que somos “colonizados” por valores e ideias de consumo, de ter mais e mais, de ciência e tecnologia que podem resolver todos os problemas e limitações. Todo nosso modo de ver, pensar e viver é contaminado pela ideia que nos coloca, os humanos, acima de todos os outros seres vivos e acima da própria natureza.
Gostaria de lembrar fatos do cotidiano, experiência de todo mundo, para ver o desafio da sustentabilidade socioambiental como um desafio profundo, de mudança de olhares, práticas e atitudes, além da necessidade de transformações profundas nas estruturas e processos sociais, culturais, econômicos e políticos, de mudança de civilização. O nosso aparente fluído cotidiano é parte do problema, pois, como cidadania, cabe a nós agir diferentemente para mudar tudo isto.
Quando vamos à feira, à fruteira ou ao supermercado e escolhemos, por exemplo, alimentos, será que nos fazemos perguntas básicas:  onde e por quem foi produzido? como foi produzido? como chegou até nós? ou só olhamos o preço e o rótulo estampado na embalagem? Ao comprar produtos, não importa se alimentos ou não, estamos nos relacionando com a natureza, num longo processo que passa por muita gente e muitas mãos. Até passamos por empresas, aquelas dos rótulos, que transformam esta nossa relação de dependência com a natureza em base de seu negócio para acumular. Será que as empresas se preocupam com a integridade da natureza e da vida envolvidas na produção do frango, do feijão, da uva, da alface, enfim da cesta de consumo? Só na volta das feiras orgânicas espalhadas pela cidade é que este tipo de questão é papo corrente. Como impactar uma grande cidade como o Rio com tais práticas e ideias?
A relação com a água é emblemática a este respeito. É um elemento vital para todo mundo. Usamos e abusamos quando é abundante. Sofremos muito quando ela falta ou não temos acesso a ela, realidade de muita gente nas periferias das nossas cidades, grandes e pequenas, e mais grave nas áreas semiáridas de chuvas irregulares. Mas sofremos quando a água, por causa da chuva, vira enchente e inundação ou provoca deslizamento de encosta. Conviver com o ciclo da água e cuidá-la é uma prática fundamental onde ela é escassa. No Brasil, o melhor exemplo de tais práticas é das populações do sertão nordestino. A natureza com seus caprichos aprontou uma armadilha para os moradores do Sudeste brasileiro, acostumados às abundantes chuvas de verão. Há dois, três anos atrás, as chuvas faltaram, os reservatórios minguaram e o fantasma da escassez despertou a consciência coletiva sobre a questão da água. Em princípio não é uma questão de escassez, mas de manejo, de uso, de falta de cuidado com este bem comum também fundamental. Quando finalmente voltou a chover na Região Sudeste deixamos até de falar sobre a água. É mais fácil falar mal da chuva e reclamar que ela estraga o fim de semana na praia do que saudá-la e comemorá-la de braços abertos.
Nas minhas caminhadas pelo Parque do Flamengo, tenho observado o comportamento das pessoas que o frequentam. Não sei se observam a sutileza deste parque tão vital hoje. Ele está em área de mais de 3km de comprimento por uns 300 m de largura, formada pelo aterro da Praia do Flamengo, na Baía da Guanabara. É o monte Castelo destroçado que foi depositado aí. O projeto original era transformar a área “conquistada” ao mar para fazer um grande condomínio. Devemos antes de tudo à grande Lota Soares Macedo ter conseguido convencer o governador Lacerda sobre a importância de criar aí um parque. Ela se associou a um grande gênio naturalista e pintor, o Burle Marx, para produzir o maior jardim tropical com a combinação de grandes gramados livres, caminhos e praias ao plantio de árvores, palmeiras e arbustos de forma a formar uma espécie de magnífico quadro natural.
Hoje o Parque do Flamengo recebe muita gente, especialmente nos fins de semana e feriados, quando as pistas expressas que o atravessam são fechadas. Pessoas vão para a praia, bonita mas poluída, caminham, andam de bicicleta, jogam peladas, fazem encontros, celebrações de aniversários, piqueniques, aproveitam a pista de skate. O Parque também recebe muitos eventos, como shows, maratonas e corridas. Mas, se fosse feita uma pesquisa entre os frequentadores, será que chega a 5% os que sabem de sua origem trágica como relação com o belo patrimônio natural do Rio (desmonte do Castelo, aterro da Baía…) e seu resgate como comum natural produzido por ação humana, graças à inspiração de Lota e à genialidade de Burle Marx?
O que mais me impressiona é a falta de cuidado de nós, seus frequentadores. No final de domingo, o Parque fica feio de triste com o lixo jogado por toda parte. O batalhão de garis que o cuida não dá conta de algo que seria simples se todos colaborássemos. Afinal, é lindo e gostoso encontrar o Parque do Flamengo limpo para ser curtido. Ele não merece ser tratado como se não fosse nosso espaço comum, livre, que quer ser curtido em sua beleza e que nos oferece recantos incríveis. Mas aí precisamos mudar mentalidades e práticas, começando por jogar o lixo no lixo e não por toda parte. Porém, tem algo mais grave acontecendo. Tem frequentadores do parque que maltratam suas plantas, as suas joias raras. As plantas emprestam suas formas, os infindáveis matizes verdes de suas folhas, as flores e frutos e os seus conjuntos dançantes ao vento para lhe dar singular beleza. Destruir as plantas é destruir o Parque do Flamengo. Precisamos, sem dúvida, cobrar das autoridades o replantio, mas nós precisamos ser os responsáveis maiores pelo cuidado do nosso parque.
O Parque do Flamengo é uma grande reserva de biodiversidade. Não são só plantas do bioma Mata Atlântica. Burle Marx tinha uma concepção mais planetária e acabou valorizando plantas dos trópicos do mundo inteiro para formar o verde do Parque do Flamengo. A minha relação especial com o parque tem profundas raízes na infância e adolescência e, hoje, com o fato que mantenho um sítio em Rio Bonito, a uns 90 km do Rio. Como filho de agricultores de origem polonesa, nascido  no Norte do Rio Grande do Sul, desde o núcleo familiar e depois no seminário capuchinho onde  fui estudar, aprendi a conviver, observar e gostar de plantas. Também aprendi práticas básicas de cultivo e cuidado. Por isto, desde que consegui o sítio, passei a colher sementes no Parque do Flamengo. Faço isto por onde ando, mas o parque é o maior banco natural à disposição. Assim, caminho, observo, descubro diferentes plantas, recorro aos meus livros para saber mais delas, sua classificação científica e nomes populares, sua origem e sua reprodução. Tenho tido bastante sucesso com as sementes colhidas no Parque do Flamengo.
Mas o que me choca sempre é quando algum frequentador, me vendo colher sementes, pergunta: para que serve? dá pra comer? Sempre respondo que é para plantar e dou informação básica sobre a planta. Aí, em geral, espelha-se uma decepção na pessoa que me fez as perguntas. Como poucas plantas do parque são comestíveis ou fitoterápicas, ainda pode vir outra pergunta: por que você não planta frutíferas em vez de árvores? A pergunta é reveladora da absoluta ignorância sobre os sistemas naturais de plantas, de sua interdependência e sua relação com animais, formando biomas, etc. Assim, não dá para entender porque preservar, cuidar, sem o que futuras gerações não terão direito às mesmas condições que a nossa.
Poderia relacionar muitos outros exemplos do cotidiano de inconsciência ou até desprezo e de total falta de práticas que reconhecem a necessidade de cuidar a natureza, dado que conviver e depender dela é simplesmente a base do viver. Mas me limitei a tais exemplos para mostrar porque na conjuntura de derrocada de valores e princípios fundamentais do bem viver e da democracia ganham espaço discursos e agendas políticas que, em nome do mercado e de empregos, negam qualquer restrição em termos ambientais.  Basta ver o que Trump anda dizendo a respeito e como os especuladores nas bolsas de ações estão contentes. Mal se passou um ano da adoção da agenda do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável, mesmo limitada, e já está ficando fora de debate.
Até quando vamos continuar dando as costas à Mãe Terra?
 
Rio, 29/01/17

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