Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

Para nós, brasileiro(a)s, deveria servir de alento o referendo na Grécia. No impasse gerado pelas negociações do ajuste estrutural da dívida com a “tróika”- FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu -, a solução encontrada pelo Seryza, o partido grego da esquerda hegemônico, foi chamar a cidadania para decidir o rumo a tomar. Afinal, em democracias, os impasses sempre devem ser resolvidos pela cidadania diretamente e não pelos seus representantes eleitos. Mas, nas democracias de baixa intensidade – estado em que mergulharam o Brasil e a região com o esgotamento da onda democratizante de 30 anos -, esta força e inspiração instituinte e constituinte está sendo sabotada pelos eleitos. A Grécia, berço da própria ideia de democracia, está dando o exemplo de sua vitalidade e da capacidade de desempatar situações.
O resultado na Grécia foi claro, claríssimo, com mais de 60% dizendo não às imposições da tróika ao governo grego. Poderia ser majoritário o “sim” às duras medidas de ajuste, também legitimado pelo voto, mas ganhou o “não”. O mais importante foi a própria cidadania ser chamada a decidir. Nada mais emblemático e problemático para instituições e seus gestores do que a vontade popular. Não existe algo mais radicalmente democrático do que isto. Claro, a forma de expressão pode variar. Poderia ter sido uma revolta popular, com quebradeira e tudo mais, legítima também no seu contexto. Foi usando o desgastado e velho voto que a população grega entrou diretamente na negociação e vai fazer a diferença. A velha e, ao mesmo tempo, nova Grécia dando o exemplo do que fazer diante da crise e mostrando o caminho a democratas radicais pelo mundo afora.
Vejamos mais de perto o que está em questão. Uma dívida impagável, que até o próprio FMI reconhece “impagável” e propõe que seja reduzida a 30% (O Globo, 04/07/15, p.21). Porém, a posição institucional europeia, da Comissão e do Banco Central, abertamente apoiada pelo Governo de Ângela Merkel, da Alemanha, não vê outra solução a não ser o mais duro ajuste fiscal da economia grega para pagar credores, sem nenhuma consideração com o impacto disto na vida da população. De outro lado desta equação, um governo legítimo, eleito para dizer não a tais políticas, mas com uma dívida de mais de 170% do tamanho do PIB grego e com um terço da população sofrendo do desemprego (com 50% de jovens nesta situação).
O cerne da questão é que o impasse grego é sobre direitos. Afinal, direitos de financiadores ou, mais precisamente, direitos de detentores de capitais podem estar acima de direitos humanos, de direitos de cidadania? É sobre isto que o povo grego foi chamado a decidir e decidiu pelos direitos humanos, pela cidadania dos povos acima e antes de qualquer outro interesse, força, organização ou política. Tão simples assim! Como ativista da nascente cidadania planetária, tendo dado muito de minha energia pessoal e levado o Ibase a engajar-se institucionalmente na aventura do Fórum Social Mundial, contra a globalização econômico-financeira do capitalismo, com o sonho de que “outro mundo é possível”, só posso ficar feliz com a determinação da cidadania grega dizendo um sonoro “não” às imposições da “tróika”.
A decisão da cidadania grega não acaba com a disputa e as difíceis negociações, mas as coloca no lugar que sempre deveriam ter estado. É revelador o fato que a tal “tróika” não queria o referendo e temia o seu resultado. Agora, a negociação mudou de enfoque por decisão majoritária da própria cidadania grega, a mais fundamental no caso. O problema não está resolvido e retaliações do subjugado FMI a interesses da grande finança, da poderosa União Europeia, do Banco Central Europeu, tendo por trás a hoje revigorada Alemanha, vão vir com força total. Até a exclusão da Grécia da União Europeia e da zona do euro está no horizonte possível. O fato é que o referendo grego é também uma decisão sobre o projeto político da própria União Europeia. Saberá ela lidar com tal manifestação não prevista de cidadania, não importa que seja num pequeno país, somente 2% do PIB da UE?
A construção da União Europeia não foi motivada por livre mercado, mas por reconhecimento que com guerras ninguém ganha, em última análise. A Europa moderna foi gestada em guerras sem fim. Após a carnificina da II Guerra Mundial (1939-1945), com mais de 90 milhões de mortos, França e Alemanha transformaram a paz em força construtiva de um novo futuro, de cooperação e solidariedade. A ideia dos anos 50 prosperou e levou à União Europeia, com moeda única e hoje com quase 30 países (antigos beligerantes, diga-se de passagem). No centro da proposta de união sempre esteve a ideia de solidariedade com respeito à diversidade, onde os diferentes povos e culturas deveriam conviver em equidade. Os “fundos de compensação”, visando a tal equidade, foram instrumento fundamental da construção de uma Europa Democrática Federada. Tais fundos ajudaram os povos menores e mais pobres, como Irlanda, Portugal, Espanha, Sul da Itália e, sem dúvida, a Grécia. Com o avanço da globalização neoliberal e a moeda única a União Europeia acabou caindo na armadilha das regras financeiras ditadas pelas grandes corporações, nada cooperativas e solidárias. Assim, na grande crise recente, prevaleceu o interesse e os tais “direitos” de credores.
O referendo na Grécia traz ao centro do debate europeu esta questão sobre a própria União Europeia. A Grécia poderá ser excluída no imediato, mas com grande impacto no projeto europeu de unidade, pois sua exclusão vira ameaça a outros países em dificuldade. O certo é que reabre o debate político democrático sobre os limites de ajuste para atender os dominantes interesses da grande finança e, sobretudo, sobre a Europa dos Povos que os europeus querem construir.
Tal debate chega em boa hora no Brasil, mergulhado em grande crise política, econômica e, por que não, de identidade e projeto de sociedade. Nós também precisamos encontrar energia para influir no que se decide – ou não se decide – nas instâncias oficiais da política e da grande mídia. Precisamos exercer nosso papel como instituintes e constituintes. Precisamos urgentemente identificar nossos ideários de radicalidade democrática neste momento difícil pelo qual passa o país, a democracia e a própria cidadania. Esta é uma tarefa exclusivamente nossa. Precisamos sair da letargia e mal estar a que a conjuntura nos relegou. Sempre é tempo de reagir. Que os princípios éticos da democracia nos inspirem e a radicalidade democrática seja o instrumento para sair do impasse geral em que mergulhamos.

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