Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

Continuamos ladeira abaixo com nossa democracia aprisionada e vilipendiada, onde a política virou a arte da trapaça e de subserviência ao poder de ocasião, tudo para proteger privilégios e se salvar, sem a mínima consideração com a busca do bem público e comum. Quem está por trás? Quem arquiteta tudo isto? Quem, no final de contas, está se aproveitando do vazio institucional e jurídico criado pelo impeachment e pela “lava-jato”, para o verdadeiro desmanche do arcabouço constitucional – imperfeito, sem dúvida, mas o possível historicamente – construído pela onda democratizadora que nos deu alento deste os anos 80 do século passado? Não penso que as caras públicas que compõem o Governo Temer e lhe dão suporte no Congresso Nacional tenham qualquer organicidade para serem capazes de arquitetar um projeto assim, pois não passam de um grande bando querendo prestar serviço ao poder e, acima de tudo, proteger cargos com foro privilegiado e de acesso aos recursos públicos. Estamos diante de um descalabro que, se não conseguirmos impedir, vai nos dar o fascismo e a barbárie no final da linha. O neoliberalismo sob domínio do capital financeiro está reinando entre nós e seu gerentão é Meireles, executivo de carreira em grandes corporações financeiras mundiais.
Agora, além de todas as maldades de Projetos de Emendas Constitucionais – PECs, e das Medidas Provisórias – MPs, aprovadas a toque de caixa, avança no Congresso uma proposta de Reforma Política, saída daquele antro de  “fichas sujas”, e que não passa de um atentado fascista à política e à democracia. De modo simples e direto, em nome de uma Reforma Política, só se busca manter os mandatos dos atuais caciques e parlamentares subservientes, daquelas personagens esdrúxulas e da enorme sopa de siglas partidárias “legais” que nada representam, absolutamente nada, e, pior, em lista fechada e com financiamento público. Ou seja, ideias democráticas ousadas e inovadoras, surgidas do seio da sociedade civil, buscando dar sentido radical à prática da disputa democrática entre nós – como ter partidos que, de fato, sejam portadores de um imaginário, valores e propostas, expressões de forças vivas na sociedade, e evitar o tal “mercado do voto” com financiamento empresarial em busca de vantagens e lucros -, foram remodeladas agora pelos caciques partidários neste nosso desconfigurado Congresso Nacional para permitir a simples reeleição dos mesmos. Isto é Reforma Política democrática ou um verdadeiro ataque à democracia?
Não podemos deixar, de jeito nenhum, que isto passe. É como dar um golpe fascista consolidador da situação que vivemos sem acabar com as instituições. Nossos filhos e netos não merecem um país assim. Nós, que vivemos a ditadura e todas e todos que acreditam num socialismo democrático, em nossa diferença, precisamos reagir para que o bem público da política numa democracia seja minimamente garantido. Acho que temos muitos, muitíssimos, para compartir tal ideia e iniciar uma reação. Busquemos junto a “cola” que nos pode agregar e transformar as várias trincheiras de resistência cidadã, que já construímos, nas bases em que podemos fincar os pilares de um novo e vigoroso processo de transformação democrática da política e pela política.
Neste ponto, penso, precisamos esclarecer alguns pontos entre nós que compartimos tantos imaginários e valores. A ideia da Reforma Política nos ronda já há algumas décadas. A Constituição Cidadã de 1988, um marco fundamental, foi uma espécie de máximo possível nas circunstâncias de então. Limitada? Sem dúvida! Mas olhando pros Atos Institucionais da Ditadura e as Constituições prévias ao próprio golpe militar, que avanço! O Congresso eleito em 1985 não foi uma Assembleia Constituinte como a cidadania demandava. Foi um Congresso moldado pelas regras eleitorais que a própria ditadura criou no contexto das pressões pela Anistia e que permitiu a constituição de novos partidos.  Por isto, tivemos que aguentar o Sarney na Nova República e o “centrão” com seu fisiologismo. Felizmente, a sociedade e a política haviam decantado figuras políticas de envergadura, acima dos partidos, como Ulisses Guimarães, Covas, o próprio Lula e muitos outros, que extraíram leite de pedra e nos outorgaram uma Constituição marco para o processo histórico que seguiu até o golpe do impeachment de 2016.
Bem, começamos a discutir a Reforma Política ou da Política num processo que se alastra pelas últimas duas décadas. Nada avançamos, na verdade. Teve o caso exemplar da iniciativa popular da “Ficha Limpa”, bem ou mal uma referência. Mas nada mais, infelizmente! O debate da Reforma Política ficou restrito a círculos sem impacto verdadeiro no debate público da cidadania, aquele que de fato importa. Só em 2013, com aqueles protestos gigantes, explosão de cidadania como considero, a questão do descrédito da política e, sobretudo, das representações institucionais se tornou pauta pública. Mas muitos entre nós pensam que aquelas jornadas foram o começo do golpe. Como? Por que? Até hoje não vi análises minimamente convincentes a respeito. Penso que foi mais cegueira ou um não querer ver um grande despertar e alerta cidadão por parte da esquerda, em particular a partidária, do que outra coisa. Dilma Rousseff até anunciou a convocação de uma Constituinte, uma espécie de fogo de palha sem maiores consequências e nem base legal.
Vejo possibilidades e limitações nos termos em que o debate da Reforma Política tenta se instaurar no meio da sociedade civil. As duas correntes principais existentes, até aliadas em muitos aspectos, nada tem a ver com o que se arma no Congresso Nacional. Importa ter bem claro que o Congresso quer Reforma para limitar a política, a ritualizar, a manter como espaço de privilégios de certos bandos – Bala, Boi, Bíblia e outros mais – e de caciques partidários profissionais, com currículos que nem podem divulgar! O nosso debate deve ser de resgate e dignificação da política, inclusive partidária, para a cidadania voltar a acreditar no seu poder transformador da democracia.
Central, acredito, é pensar no bem público que representa o espaço da política, a disputa política como forma de luta democrática, e de fazer política. Deixando de lado o que o Congresso apronta, que nada tem a ver com tal debate, pensemos nas propostas postas na mesa por organizações e movimentos sociais da sociedade civil, redes, coalizões e fóruns. Na minha opinião, os debates estão amarrados pelo aspecto institucional, importante, sem dúvida, mas insuficiente. Não se trata somente de dar mais espaço à democracia direta, com plebiscitos referendos em temas centrais, com mais democracia localizada nos territórios, com mais participação cidadã com poder de decisão em políticas públicas e seus recursos, com possibilidade de recall nos mandatos de nossos representantes. Precisamos do ambiente público, do espaço da política como locus de cidadania, de debate público e construção de agendas públicas.
Uma questão vital na mudança da política é a descolonização do espaço e agenda pública imposto pela grande mídia privatizante. Isto é uma questão de política e de democracia por excelência. Temos as mídias alternativas, democraticamente anárquicas, para o bem e o mal, por sinal. Precisamos ser capazes de criar correntes de opinião livres no seio da sociedade civil, no berço da cidadania. O fato é que este tema, dado o poder das redes “globais” e outras, parece proibido. Estamos dispostos a encarar tal questão, doa a quem doer? O certo é que pouco ou nada de apoio teremos daquele bando do Congresso. Na verdade, lá se situa mais o problema do que a solução dele. Transformação da política e pela política só pode vir como movimento irresistível se abraçado pela cidadania, como foi no “Diretas Já”.
 
Rio, 26/03/17

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